Compartilhe
Tamanho da fonte


RIOS & RUAS
Acadêmico: José Renato Nalini
Os paulistanos foram privados de uma convivência pacífica e harmoniosa com seus rios e córregos.

Rios & ruas

Existe um projeto no município da capital, que desde 2010 mapeia rios e córregos subterrâneos de São Paulo. Verdadeiro crime perpetrado contra a maior cidade da América Latina: enterrar seus cursos d’água para favorecer o automóvel. Um veículo egoísta, que transforma o condutor numa espécie não raro sem qualquer sensibilidade, sentindo-se um super-homem à direção da máquina potente. Movida a veneno, que não faz senão poluir e emitir gases causadores do efeito-estufa.

Enquanto isso, as centenas de riachos, córregos, nascentes, veios d'água e outros bens naturais que adornavam o espaço e viabilizavam a vida neste planalto foram enterrados. Canalizados, cobertos por asfalto. A cidade cresceu mal: cinza, asfaltada e com pouco verde. Há regiões ainda mais prejudicadas do que as outras, nesta megamacrometrópole! Bairros inteiros sem árvores, sem parques, sem jardins, sem arborização.

Esta é uma sina irremediável? Por enquanto, parece utopia querer converter São Paulo numa cidade agradável. Verdade que ela tem nichos aprazíveis. Verdadeiros enclaves urbanos, inacessíveis para a grande massa de milhões que vivem mal. Cada vez mais longe. Cada vez necessitando de mais condução.

Haverá um dia coragem para devolver os córregos à natureza? Para fazer com que possam correr à vontade, límpidos e com margens providas de matas ciliares, aquelas que garantem higidez necessária para que essa água pudesse até dessedentar o humano, sem risco de qualquer contaminação por elementos fecais?

Riachos que desaguassem em lagos naturais, abastecidos de árvores garantidoras da permanência de água, espaços para repouso, para lazer, para que o paulistano se reconciliasse com uma natureza expulsa pelo homem, que preferiu o ambiente ao veículo automotor?

Esse projeto "Rios & Ruas" é saudável, mas o seria ainda mais, se além de fazer o levantamento das vítimas de um urbanismo que não pensou nos seres humanos, nem na vida vegetal, formulasse estratégias de redescoberta dos córregos. Na verdade, seria necessária uma verdadeira "ressurreição" desses cursos que, sepultados, não atendem à sua vocação natural e desnaturam o território paulistano.

Não faltaram bons projetos para a capital paulista. Ruy Ohtake, esse verdadeiro gênio da arquitetura, do urbanismo e do humanismo, projetara um sonho para o Tietê. Ele deveria ter grandes parques nas margens, não precisaria ter-se tornado um malcheiroso condutor de esgoto doméstico, substâncias venenosas das indústrias desprovidas de qualquer responsabilidade social e a imundície ali jogada por uma população iletrada, produtora de fabuloso descarte. São Paulo é a capital do desperdício.

Os paulistanos foram privados de uma convivência pacífica e harmoniosa com seus rios e córregos. Por isso é que os qualificativos encontrados para tipificá-la não costumam ser os mais encomiásticos: "selva de pedras", "pauliceia desvairada", "insensatez de concreto armado", "nau sem rumo", "metrópole tresloucada", tanta coisa mais que já serviu para descrever este verdadeiro milagre.

Sim. Pensar que milhões saem de suas residências, cada vez mais longínquas, submetem-se a um transporte coletivo que deixa a desejar, chegam depois de horas ao local de trabalho, ali permanecem horas a fio e voltem para casa à noite, em perfeita ordem? Só pode ser milagre. Assim como vejo o funcionamento do metrô. Levas de pessoas apressadas, praticamente correndo em estações fruto de erro (como a da Consolação, ao obrigar as pessoas a longo deslocamento para tomar a linha amarela), sem agressões, sem esbarrões, sem reclamações e sem encrencas.

Quando é que São Paulo terá uma administração que leve a sério as condições não amigáveis de sua urbanização desvairada? Que faça um reordenamento mais amigável, mais ético, mais ecológico desta conurbação incrível? Quem terá a coragem de desfazer erros somados durante séculos, a começar pelo crime ecológico de sepultar riachos, córregos e demais cursos d'água, que hoje fazem falta quando enfrentamos crise hídricas como a de 2014?

Se é verdade que a humanidade evolui, embora lentamente, na espiral hegeliana conducente à possível perfeição, um dia São Paulo terá desenterrados e ressuscitados os seus cursos d'água, hoje escondidos, para tornar mais saudável e mais bonita a vida de quem a escolheu para esta curta e frágil peregrinação pelo planeta. Não é impossível. Basta querer.


Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 17 02 2023



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.