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A VELA ACESA
Acadêmico: Gabriel Chalita
Os ventos, que sopram, sopram belezas e sopram ausências. É preciso paciência. Um pouco de compreensão da tristeza já é prenúncio de alegrias.

Consegui o dizer correto e a presença. Vera, minha sobrinha, decidiu por vir. Decidiu rasgada em dor que, talvez, nem o tempo, costurador, será capaz de dar conta.

Minha irmã despencou, por decisão própria, de uma altura incapaz de outro decidir a não ser terminar a vida. Sobre isso, ainda não sou capaz de dizer. Não tenho distanciamento nem lucidez para adentrar o mundo de sombras que demitiu qualquer luz, qualquer futuro, qualquer rescisão do contrato de dor que vigeu nos tempos finais.

Minha sobrinha havia assistido à partida do pai. Conversas explicaram que nada mudaria. Mudou. Mudou ele de cidade, de presença, de atenção, segundo minha irmã. Eu insisti que não alimentasse na menina as ausências do pai. Ela ouviu nada e, por mais de uma vez, repetiu: "Ele desistiu de você, ele desistiu da nossa família".

Minha irmã perdeu, há muito, o prazer dos instantes. De falante passou aos silêncios. Não os necessários para a construção da força interior, mas as vacuidades de alegria e de sonho. A alegria empresta ao mundo sorrisos, e o sonho, os plantios das florestas de amor que permitirão que se aconcheguem em nós, outros sonhadores, oferecedores de outros sorrisos, também.

E assim se vive. É como uma vela acesa que ilumina e que aquece. É como mais de uma vela acesa. Uma ao lado da outra, sem queimar, a não ser o tempo bonito do existir, iluminando. As velas vão andando nos terrenos inabitados e fazendo ver o quanto de possibilidade ainda há. Minha irmã deixou de ver. E hoje seus olhos cerrados são velados nesse espaço da despedida final. A vela acesa é apenas de respeito. E de oração.

Minha sobrinha Vera chorou o choro mais doído do mundo e avisou que não viria. "Tia, minha mãe desistiu de mim". Vela que também sou, retruquei: "Sua mãe desistiu de uma dor, não de você".

Com os bracinhos tímidos, aos 10 anos, ela empurrou o choro e pensou no que eu disse. E voltou, "Desistiu de uma dor?". Eu prossegui, "Sim, meu amor, a dor faz parte, é preciso dar conta, é preciso conversar com ela, é preciso saber que com ela há outros sentires", e fui filosofando sem ser filósofa.

Sou eu a única irmã. Sem filhos. Sem casamento. Apenas com as interrogações de não ter percebido o buraco que consumia os seus dias. Tenho ainda que acender alguma luz que devolva a voz de minha mãe. Que nada ainda disse, desde o salto da filha.

Brigo comigo querendo voltar o tempo. Poder nenhum tenho. Ontem pela manhã, era apenas amanhecer. Cada um de nós respirava os passados e as promessas de futuro. Foi no entardecer que ela entardeceu mais do que se deve, que ela apagou o que nos dias que viriam poderia ser diferente.

Os ventos, que sopram, sopram belezas e sopram ausências. É preciso paciência. Um pouco de compreensão da tristeza já é prenúncio de alegrias. Longe de mim os julgamentos. O mundo de dentro é desconhecido demais para conclusões apressadas. O que dei conta foi de dizer à minha sobrinha que não era ela a razão, jamais seria. Que fosse comigo ao velório da mãe. Que chorasse o choro necessário.

Agora, estamos juntas. Sentadas em cadeiras duras. Mãos enlaçadas. Cabeça recostada no ombro, olhando a vela acesa de uma vida que, antes do tempo, se apagou. Sou uma mulher de fé e rezo para que, em outra morada, ela prossiga acesa sem as dores que incompreendeu na passagem por aqui.


Publicado no site do jornal O Dia, 12 de fevereiro de 2023.



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