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Acadêmico: José Renato Nalini Ninguém pode deixar de pensar que seu um dia ali estará. Ou ter presente a inevitável realidade de que a morte é certa. Quem viveu merece respeito. Merece consideração.
Seu dia chegará O assunto incomoda a maior parte das pessoas. Elas preferem pensar que nunca morrerão. Procuram fugir à morte e deixar de se preocupar com ela. Mas todos temos encontro marcado com a ceifadeira. Ela é a mais democrática das ocorrências que incidem sobre a aventura humana. Não há tergiversação, não há fuga, não há escape. O respeito pelos mortos é um dado histórico e remoto. As pirâmides egípcias que o digam. Mas até recentemente, havia uma cultura necrológica importante. A arte funérea nos legou inúmeras peças de arte. Infelizmente, hoje relegadas ao abandono. Quem visita o famoso cemitério da Consolação constata o quão volúveis são os vivos. Olvidam-se com facilidade de seus mortos. Entretanto, as tumbas que ali estão constituem patrimônio arquitetônico, estético, histórico e cultural. Tempos atrás, a Prefeitura de São Paulo conseguiu identificar túmulos que mereciam visita e estudo. Breves relatos ainda se encontram junto a eles, embora bem danificados. O mais é testemunho da brevidade existencial. Nomes famosos, figuras legendárias, protagonistas da História de São Paulo e do Brasil jazem no olvido. Depois desta temporada de chuvas benfazejas, cresce a vegetação sobre muitas lápides. Pode-se também verificar que a criminalidade não poupa as necrópoles. Tudo o que se pode levar de bronze já foi levado. Na volúpia de furtar, peças irrecuperáveis quebradas. Não alimento a ilusão de que isso tenha a menor viabilidade de reversão. Basta verificar que, em lugar dos verdadeiros monumentos, planejados, projetados e executados com carinho por viúvos e viúvas, órfãos ou por pais que sofreram a magna injustiça de terem de enterrar seus filhos, hoje não são raros os que optam pela cremação. Cinzas ao mar, cinzas ao vento, cinzas que desaparecem antes de que a memória dos defuntos também se apague. Multiplicam-se os "cemitérios-parque", sem a arte tumular. Grama, árvores, mínima indicação de quem ali repousa. Tentativa exitosa de apagar sua lembrança, escondendo-a no verde. Dia chegará em que os corpos serão convertidos em adubo, o que motivará os ambientalistas a preferirem esse final ecológico. Mas subsistem razões para que os atuais cemitérios sejam objeto de cuidado zeloso e de recuperação dos exemplares que mereçam duração mais longeva do que a ingratidão humana. Primeiro, pelo aspecto moral. Ninguém pode deixar de pensar que um dia ali estará. Ou ter presente a inevitável realidade de que a morte é certa. Quem viveu merece respeito. Merece consideração. Em segundo lugar, não há condições de se planejar o futuro, sem ter presente o que foi o passado. Vidas ilustres e vidas anônimas ocuparam espaço neste planeta. Amaram e foram amados. Trabalharam, protagonizaram. Fizeram parte da história oficial ou da história familiar de outros viventes. Quanta riqueza na recuperação de percursos humildes, singelos, em comparação com aqueles que figuram nos compêndios escolares. Terceiro: existe uma arte que já deixou de existir e cujos remanescentes precisam ser objeto de estudo das novas gerações. Manter eretas as esculturas, conservados os preciosos sepulcros que são verdadeiras espécies artísticas hoje na mais completa extinção. Quarto: quem estuda religião tem todo o interesse em analisar qual o comportamento dos que sobrevivem, quando perdem pessoas queridas. Os cemitérios oferecem amplíssimo campo de pesquisas para os que se dedicarem a essa esfera. Quinto: o turismo, que é uma indústria salvadora da economia de tantos países, também vive da visita aos campos-santos. Vide o Père Lachaise, em Paris, as necrópoles italianas, a Recoleta em Buenos Aires. Aqui em São Paulo, ainda há visitantes a Airton Senna, a Elis Regina, à Marquesa de Santos, e essa peregrinação mereceria prosseguimento. Meu querido amigo e confrade, o sociólogo José de Souza Martins é um profundo conhecedor dessas cidades dos mortos. Sua expertise deveria servir para que a Municipalidade retomasse o cuidado com suas necrópoles. No mais e por último, é preciso que cada um de nós tenha consciência: o nosso dia também chegará. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão Em 14 02 2023 voltar |
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