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NOVAS EPIDEMIAS À VISTA
Acadêmico: José Renato Nalini
Aqueles que exterminam a floresta e a inundam com grandes reservatórios de água para produzir energia, não sabem - ou fingem não saber - que colocam em risco a vida de milhões de humanos.

Novas epidemias à vista

Quem pensou que a Covid-19 foi dominada e que a humanidade não tem mais com que se preocupar, se enganou. Aqueles que exterminam a floresta e a inundam com grandes reservatórios de água para produzir energia, não sabem - ou fingem não saber - que colocam em risco a vida de milhões de humanos.

No capítulo "O elefante negro", do apaixonante livro "Arrabalde", de João Moreira Salles, ele narra a tragédia que foi a temeridade imprevidente da construção de Tucuruí. Tucuruí, arumateua e caraipé são os nomes de três novos vírus descobertos por cientistas durante os estudos epidemiológicos realizados no entorno da usina de Tucuruí. Os três integram uma única família de arbovírus, nome que se dá aos vírus transmitidos por artrópodes tais como insetos

Constatou-se uma nefasta relação direta entre distúrbios ecológicos e o surgimento de novos e antigos microorganismos com potencial patogênico. O estudo "Gestão imprópria do ecossistema natural na Amazônia brasileira resulta na emergência e reemergência de arbovírus", assinado pelo cientista Pedro Vasconcelos e outros cinco autores, relata que durante a construção dessa malfadada usina foram isolados vinte e sete novos arbovírus.

Já haviam sido inventariados os arbovírus presentes na floresta primária da região de Tucuruí, mas apurou-se a emergência de microorganismos até então desconhecidos da ciência, como o surgimento de vírus que, embora existentes em outras partes do continente, ainda não haviam sido identificados ali. Isso derivou exatamente da alteração do meio ambiente. O novo lago atraiu mosquitos que até então não haviam encontrado condições favoráveis para se reproduzir na região. Com eles, foram trazidos os vírus de que são vetores.

Foram relacionados os arbovírus associados a doenças humanas que já haviam sido isolados na Amazônia, como o vírus da dengue e o da febre amarela. Mas aparecem juntamente com outros bem menos conhecidos: Alenquer, bussuquara, guama, mucambo, murutucu, uma exuberante coleção de patógenos causadores de febres, erupções cutâneas, hemorragias e encefalites.

Vasconcelos, diz João Moreira Salles, é um paraense que se doutorou pela Universidade Federal da Bahia, pesquisou nos Estados Unidos e voltou para o seu estado natal. É especialista em arbovirologia e febres hemorrágicas e o laboratório que chefiou por dezesseis anos já isolou mais de duzentos novos tipos de arbovírus, um recorde mundial. Ele próprio identificou e descreveu mais de uma centena deles. Ele conhece a espantosa biodiversidade amazônica de vetores e hospedeiros de insetos que transmitem os vírus e vertebrados alados e arbóreos que os abrigam; a floresta coloca à disposição de cada um desses microorganismos uma variedade incontável de nichos ecológicos. Todos acabam por encontrar as condições ideais para prosperar.

A infecção humana é quase sempre um acidente biológico. Em regra, o homem não faz parte do cenário da floresta. Mas pode ocorrer - sempre ocorre - um acidente fortuito. Garimpeiros destroem as barrancas de um igarapé. Madeireiros derrubam as florestas. Chegam os bois. Tratores erguem uma barragem. Os hospedeiros naturais - macacos, pássaros, morcegos, preguiças, roedores, marsupiais - fogem ou são extintos. O vírus, obedecendo ao imperativo da própria perpetuação, salta para uma nova espécie apta a abrigá-lo.

O prestigioso IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada realizou um estudo em 2015, cuja conclusão foi a de que um incremento de apenas um por cento na área desmatada de um município leva a um aumento de vinte e três por cento nos casos de malária e de oito a nove por cento nos casos de leishmaniose, uma doença que, se não tratada, causa desfigurações e pode levar à morte.

Afirma Vasconcelos que não conhecemos nem dois por cento dos vírus do Brasil. Mas uma coisa é certa: as espécies virais têm como fatores de emergência uma ação humana. O desmatamento está imediata e diretamente ligado à dengue, à febre amarela, a tudo aquilo que ainda não se conhece, mas está prestes a se deflagrar.

Como assinala João Moreira Salles: "Transbordamento é o termo que descreve o evento no qual um patógeno salta de um animal para o seu primeiro hospedeiro humano. A pandemia causada pelo Sars-Cov-2 nos familiarizou com moléstias dessa natureza, as chamadas doenças zoonóticas, aquelas que passam de animais não humanos para humanos. Raiva, doença da vaca louca, carbúnculo (ou antraz), Sars, zika, peste bubônica - todas chegaram ao homem via reino animal. Mais de 60 das cerca de quatrocentas doenças infecciosas identificadas desde 1940 são zoonóticas".

Aviso aos exterminadores da natureza: não é só deserto o que vocês fabricam. Vocês produzem epidemias, contribuem para a redução da população mais humilde, mais carente, mais frágil. Era isso o que se tinha em vista?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 04 02 2023



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