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O ARRABALDE DE SALLES
Acadêmico: José Renato Nalini
o livro "Arrabalde", de João Moreira Salles, é um convite à indignação, até nas consciências mais duras e empedernidas dos dendroclastas.

O arrabalde de Salles

O livro "Arrabalde", de João Moreira Salles, o "Salles do bem", precisaria ser lido e estudado em todas as escolas, em todos os grupos, clubes, associações e templos. O subtítulo "Em busca da Amazônia" deveria ser a missão de cada brasileiro interessado no verdadeiro desenvolvimento do país. Resulta de uma longa temporada que o documentarista passou no Pará, e contém depoimentos impressionantes que, assimilados, permitiriam aos cidadãos reagirem ao caos que se instaurou na região.

Ele começa por examinar os preconceitos nutridos em relação à floresta, considerada inexpugnável, escura e hostil ao humano. O desconhecimento levou à destruição nefasta. "De dez partes desmatadas, apenas uma trocou a floresta por alguma atividade econômica razoavelmente produtiva. Cerca de seis são pastagens de baixíssima produtividade - menos de um boi por hectare - e quase três não têm qualquer uso agrícola. São terras abandonadas".

Todos sabemos o que gerou tal situação: "Essas vastas terras desoladas não produzem riqueza, não geram renda, não dão emprego, não alimentam o país. Sua única serventia foi enriquecer algum madeireiro ilegal ou, mais provavelmente, algum especulador que primeiro desmatou, em seguida pôs lá uns bois para se dizer produtor rural e então ficou à espera de ser alcançado pela infraestrutura do Estado".

A tragédia ganhou escala nos últimos quatro anos. Recorde após recorde, num campeonato necrófilo: "a exaustão dos solos. Eliminada a floresta, o que resta no chão é uma camada pobre de terra de onde não se tira sustento; esgotados em alguns anos os nutrientes produzidos pela queimada, não há mais nada a fazer ali. Segue-se adiante, atrás de novas florestas. Na Amazônia Legal já existe um estado de São Paulo, ou um Reino Unido, de terras abandonadas. Troca-se um dos sistemas biológicos mais complexos de que temos conhecimento por essa ruína. Ao contrário do que sugere a máquina de propaganda do setor agropecuário, definitivamente não é a Califórnia do agronegócio que se está construindo ali".

Apesar da constatação pessoal da indigência moral produtora do extermínio do futuro, João Moreira Salles acredita em reação legítima do povo brasileiro. Nada obstante a aparente perda da capacidade de indignação, ele propõe que "uma das principais tarefas do país seria fazer com que os brasileiros conhecessem melhor seu patrimônio mais precioso, criando meios para que a floresta fertilizasse nossa imaginação. Um bom começo seria incluir nos currículos escolares as novas descobertas da arqueologia, que demonstram como a Amazônia é não apenas um bem natural, mas também construção humana, um artefato de cultura, ou, no modo de ver dos povos originários, um sistema surgido da colaboração entre humanos e não humanos. Durante milênios, parcelas dessa floresta vêm sendo manipuladas por mãos indígenas, num trabalho de seleção de plantas e construção de solos férteis que revela um conhecimento profundo das interações entre plantas, bichos, fungos, microoganismos, chuva e vento. A floresta que vemos hoje, parte natureza, parte obra humana, é fruto dessa notável inteligência ecológica".

Uma nação inculta, cuja educação não conseguiu remover o entulho de três séculos privada de Universidade, não conhece a Amazônia e, pior ainda, não se interessa por remover essa mácula perniciosa. O Estado brasileiro, em regra conivente com o mal, nunca se empenhou em formar na cidadania a cultura preservacionista que garantisse futuro menos plúmbeo do que o previsível. O cruel paradoxo é que a Amazônia é o único grande trunfo que o Brasil ainda possui: "Que esse sistema singular produza 20 da água doce do planeta e abrigue 25 da biodiversidade terrestre, bem como cerca de 10 de todas as formas vivas conhecidas, indica que estamos diante de algo grande. Difícil imaginar herança mais rica de um povo a seus pósteros. Somos os guardiões desse legado, o que mais uma vez nos põe diante da encruzilhada: ou protegeremos o que está sob nossa responsabilidade, ou, caso deixemos que a Amazônia seja destruída, arcaremos com o desastre moral que se abaterá sobre nós, brasileiros, neste momento crucial da história ecológica do planeta".

Se a Amazônia vier a ser realmente destruída, o que não é impossível, diante da situação de ausência de Estado ou de conivência do Estado com o extermínio, não haverá apenas desastre moral. Haverá a probabilidade, cada vez menos remota, de insubsistência do sistema garantidor da vida nesta Terra tão sofrida e tão maltratada.

Voltarei ao assunto, porque ele merece e porque o livro de João Moreira Salles é um convite à indignação, até nas consciências mais duras e empedernidas dos dendroclastas.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião
Em 29 01 2023



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