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O ABISMO DE MAFRA
Acadêmico: José Renato Nalini
"Abismo", de Mafra Carbonieri, nos faz refletir. O que fazemos para aliviar o mundo de tanta injustiça?

O abismo de Mafra


José Fernando Mafra Carbonieri é um dos maiores escritores brasileiros. Tem uma vasta bibliografia, densa e profunda. Escreveu "Os gringos", "O motim na Ilha dos Sinos", "Um estudo em branco e preto", "Arma e bagagem", "Homem esvaziando os bolsos", "Poesia reunida" e muitos outros livros. Multifacetário, polivalente, desenvolveu inúmeros heterônimos, cada qual com suas características.

Leio dele "O abismo", romance em dois volumes e me extasio com o talento de Mafra. Proclama, logo de início: "O meu propósito era escrever um romance brasileiro, ainda que acentuadamente paulista. Portanto contei os dramas da imigração europeia no começo do século XX, sobretudo a saga dos italianos. O ano de 1901 foi santo, comemorou-se o jubileu na passagem do milênio, "e choveu sangue em Palermo...". Fiel à estética realista, acompanho de perto o espírito da época e reproduzo a linguagem correspondente".

Bem original a arquitetura do livro. Os capítulos têm o nome dos protagonistas: "Pedro Ferrari", "Aldo Tarrento", "Quatro enxadas", "Os colonos", cada um deles distribuído a temas distintos. Impressionou-me o domínio de Mafra sobre situações tão específicas, quais as dos colonos submissos ao dono da terra, em condição análoga à de escravos.

Disputar uma vaga de boia-fria é uma epopeia sacrificial que poucos podem imaginar. Emociona o relato daqueles que aspiram ser escolhidos pelo rústico recrutador de mão-de obra. Dependem disso para sobreviver. Como deve sofrer a expectativa angustiante de quem não sabe se terá uma lavoura para cuidar: "O desespero transferia a dor para quando recordassem a humilhação. 'Besteira. Não pegando esse caminhão, a gente pega outro'. 'Mário, hoje eu vou junto', pediu uma mulher bem magra, de olhos saltados, com um desbotado vestido preto e a trouxa pronta. Calçava sapatos de homem e não tinha dentes. 'Não, dona. A lavoura não é asilo'. 'Nem hospício', declarou um garoto. Deram risada. A mulher afiou o olhar agudo: tentou abrir caminho com a trouxa: foi empurrada".

Trecho antológico. Assim como a narrativa de Raimundo, o faminto, ao assistir à refeição opípara e lenta de Bento Calônego, como a ostentar sua autoridade e a mostrar a diferença que os separava. O dono da terra e das almas que mourejavam na lida e o campônio hesitante em lhe pedir ajuda, ante a desventura climática, pessoal e familiar. É possível reproduzir mentalmente a cena: "Bento Calônego bebeu meio copo de pinta e pegou o garfo. Comia com a boca aberta, ia mastigando comida e saliva num ruído molhado. No silêncio da sala, com a aragem a dependurar-se na cortina, só o barulho do fazendeiro almoçando. Grãos de arroz caíam-lhe ao colo. Passou o miolo do pão no prato vazio. A cabeça inclinada, tendo nos olhos uma esperteza senil, o velho chupava o ar entre os dentes. A negra trouxe o café num bule de alumínio. Uns goles curtos, cabendo entre um e outro a calma do patrão, pausada e soprada, aprenda, zemané, tempo de murici, cada um cuide de si, Bento Calônego esgotou a xícara, repuxando os tendões do pescoço. Depois, arrastando a cadeira, levantou-se. Olhou dos dois lados. Disse a Raimundo que não dava esmola. Foi fumar na varanda".

José Fernando Mafra Carbonieri descreve as cenas com detalhes que não excluem, ao contrário, conclamam o leitor a completá-las. A imaginação faz parte do romance. O injustiçado Raimundo enfrenta um drama de consciência: o que fazer com o patrão cruel e iníquo?

Não é difícil entrar em sua consciência de menosprezado, condenado a ver sua família perecer por falta de víveres: "Encomenda a sua alma, Bento Calônego, que tempo eu não lhe dou de cavar os sete palmos da eternidade, ou da podridão, e a peixeira já lhe prolongava o punho coruscante; deixe de desatino, homem, não seja carrasco, espere passar a paixão, encomende a sua alma, fariseu, e a arma lhe acrescentava ao ódio uma profecia, no ar um brilho de unha cega; o que é isso, colono, sou um velho, sou homem de conceito e de palavra, conceito não se enterra na véspera e palavra sempre se escuta; ladrão; o que é isso, mereço respeito pela minha luta, colono, ouça, nada pesa mais na consciência do que arrependimento".

E por aí vai, a luta entre a revolta e a lábia persuasiva do mau-patrão. Tão mau, que se defende arremessando o neto, cujo nome sequer sabia, de encontro ao peão vingativo. Mafra tem o dom do romancista. Transmite os sentimentos a cada página. Lembra Graciliano Ramos em "Vidas Secas": passagens de pobres diabos migrantes: "O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão. - Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos, Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse".

"Abismo", de Mafra Carbonieri, nos faz refletir. O que fazemos para aliviar o mundo de tanta injustiça? Como dormir tranquilo depois desse alerta? As coisas ainda não mudaram tanto. O mundo precisa de nós.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião
Em 14 01 2023



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