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Acadêmico: Gabriel Chalita Poderia dizer dos seus prêmios, dos seus títulos acadêmicos, das tantas traduções de seus textos, da trajetória da primeira mulher a presidir a Casa de Machado de Assis.
O tempo pairava sobre as montanhas que abraçam o Vale do Paraíba. De um lado, a Serra do Mar; do outro, a da Mantiqueira. O espaço era uma fazenda de tradição literária, Fazenda Boa Vista, em Roseira Velha. Os saraus reuniam grandes artistas, intelectuais, proseadores do humano e do que transcende. Eram os finais dos anos 80. Foi a primeira vez que vi Nélida. Eu já havia lido seu primeiro romance, "Guia-mapa de Gabriel Arcanjo", e havia terminado de ler "A República dos Sonhos". Uma música orquestrava leveza àquela tarde. Tomávamos chá e observávamos o lusco-fusco do dia. Era mais um dia se despedindo no implacável poder do tempo. Nélida me fez grande ao depositar tanta atenção em minhas curiosidades juvenis. Eu já havia publicado alguns livros e terminado minha primeira faculdade, Filosofia. Naquele dia, ela me disse futuros, explicou de suas escolhas, de sua dedicação absoluta à literatura. Sugeriu que eu lesse "A casa da paixão". E que, depois, conversasse com ela. Foi o que fiz. Com a rapidez de quem quer motivos para prosseguir a prosa. Fiquei tomado pelo livro. Seu desnudamento, sua autenticidade. Sua entrega ao dizer com tanta força a paixão, o Eros indolente em suas flechas provocadoras de feridas aparentemente impossíveis de cicatrizar. Morremos um pouco, quando nos apaixonamos. Uma parte de nós se torna do outro. Ou o que somos deixamos de ser. Quem sabe?! "Aprendo a amar. Uma arte difícil, nenhuma norma me orienta". Que escritora, meu Deus! Esses foram nossos inícios. O tempo nos proporcionou momentos únicos. Fomos uma vez ao cinema ver "Marley e eu". Ela passou a vida relembrando que eu tive uma estratégia corajosa de fazer com que ela derramasse lágrimas sem controle algum. "Você é perigoso, meu caro". E ria, ria o amor que tinha pela vida e pelos afetos. Era plena no receber e no depositar seu tempo na necessidade do outro. Em "Vozes do deserto", Nélida abraça a angústia de Sherazade, a mulher que, durante mil e uma noites, teve que tecer histórias para acalmar o coração doente do Sultão. Choramos juntos a despedida de alguns amigos. Pasin, o da Fazenda que nos recebeu, foi embora e falamos sobre a morte. Lygia, tão menina, tão centenária, tão imortal, se foi no início do ano que também levou Nélida. Celebramos juntos as chegadas de novidades em nossas vidas. Quando li seu último romance, "Um dia chegarei a Sagres", desacreditei de tamanha originalidade em uma mulher com já tantos robustos textos. Cada cena do livro é cinema. Cada página é dor e é esperança. A saga da vida nos leva a buscar Sagres, a vencer o tempo, a resistir às intempéries. Nélida definitivamente não era dos reclamos. Enxergava pouco, o tempo e algumas doenças limitaram seus olhos, mas não sua alma, tampouco sua alegria de viver. Guardo textos e vozes que ela, tantas vezes, me enviou. Guardo seus ditos, seus conselhos amorosos, sua fidelidade à verdade e aos cotidianos, singelos, porém acompanhados dos pensamentos da solidão necessária ou dos afetos vividos em uma mesa de alimentos. Poderia dizer dos seus prêmios, dos seus títulos acadêmicos, das tantas traduções de seus textos, da trajetória da primeira mulher a presidir a Casa de Machado de Assis. Poderia fazer resenha dos seus livros. Li todos. Grifei. Anotei. Imaginei. Sofri. Sorri. Poderia dizer das conferências que fizemos juntos. Preferi narrar a fazenda, a música, a prosa e o inesquecível dia em que, depois de conhecer a obra, conheci a mulher. E que, depois de conhecer a mulher, conheci ainda mais a obra. Em que a mulher se fez obra em mim, colaboradora frequente no cimentar da minha literatura. No sepultamento de Nélida, ao lado de sua mãe, no Mausoléu dos grandes da Academia Brasileira de Letras, no Cemitério São João Batista, era possível ver o Cristo, braços abertos. Em alguns momentos, Ele parecia não estar. Sofremos as despedidas. Os ventos empurravam, então, as nuvens das desconfianças, e Ele nos abraçava nos misteriosos segredos que sussurram, em palavras quase inaudíveis, que o tempo não se encerra com a pedra que se deposita sobre o corpo que fez, com a alma, o tempo ser mais bonito. Uma chuva choveu naquele dia. Era um ano se despedindo. A palavra silenciou em respeito à grande escritora. Pouco depois, a palavra prosseguiu. Nélida é uma mulher, cuja obra o tempo não descansará. Publicado em O Dia, 8 de janeiro de 2023. voltar |
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