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Acadêmico: José Renato Nalini Júnia e Joaquim Maria Botelho partilham conosco esse tesouro intangível e precioso, que foi conviver com a mulher extraordinária que foi Ruth Guimarães.
Histórias da Casa Velha Esse o título do livro de Joaquim Maria e Júnia Botelho, filhos da grande escritora Ruth Guimarães, e que termino de ler embevecido. Conheci Ruth Guimarães a partir de seu ingresso na Academia Paulista de Letras. Uma presença discreta, serena, tranquila. Ouvia falar dela por relatos de meus queridos e saudosos amigos Lygia Fagundes Telles e Paulo Bomfim. Diziam que ela fora amiga de Mário de Andrade e que seu livro "Água Funda" fora muito elogiado por Antonio Cândido. Também Gabriel Chalita a ela fazia as melhores referências. Eram da mesma cidade, Cachoeira Paulista, onde ela sempre foi uma lenda. Mas conheci mesmo a confreira Ruth ao ler o primoroso relato de sua biografia escrita pelos filhos. Biografia e legado, foi o que eles prometeram. E cumpriram. O livro tem dez capítulos: gênese, o livro de Ruth, revelações, a saga literária, Ruth repórter e folclorista, almas primas, êxodo, crônicas, cantares e cântico dos cânticos. Todos eles sedutores. Impressiona a verdadeira epopeia de uma jovem criada pelos avós, em luta contínua pela sobrevivência digna, galgando todos os degraus do contínuo aprimoramento e um genial talento literário. Reveses sofreu. Vicissitudes não faltaram. Mas ela se mostrou muito superior aos percalços. Sapientíssima, educou gerações, foi inspiração para vocações exitosas. Educadora eficiente e verdadeira polímata. Conseguia vencer no trabalho, nem sempre compatível com suas aptidões, cuidar dos irmãos menores, de familiares que a ela recorriam. Depois, formar os filhos de maneira a torná-los hábeis vencedores em suas carreiras, com a exata percepção de que tiveram um lar privilegiado. Amiga da natureza, ecologista antes mesmo de o Brasil despertar para a exuberância milionária de sua biodiversidade, escrevia à sombra do mangueiral. Protegeu a flora e, já em idade provecta, começou a prover sua chácara com espécies exóticas, talvez pensando na escolha dos netos, já que seus filhos tinham as suas frutíferas de preferência. A história de Ruth Guimarães entrelaça-se com a mais autêntica nobiliarquia literária que se reunia na Farmácia Baruel, de Amadeu de Queiroz. A relação dos frequentadores daquela botica intelectual é um retrospecto dos escritores que se inscreveram no memorial dos pensadores mais atuantes da pauliceia. Ruth assimilou toda a tradição oral herdada de seus ancestrais, pesquisou para aportar conteúdo científico às estórias e lendas, publicou-as repaginadas e merecedoras do reconhecimento dos luminares que se encantaram com essa prodigiosa revisita. Converteu-se em perita no folclore brasileiro, correspondeu-se com Luiz da Câmara Cascudo, era chamada a participar de simpósios, encontros, seminários e ciclos de estudo a respeito dos costumes brasílicos, na herança das várias etnias que compuseram a nossa gente. Incansável, traduziu os clássicos, mereceu elogios pela fidelidade na tradução. A ela não cabe afirmar "tradutore, traditore". O seu "Água Funda", publicado em 1946, sob os auspícios de Edgard Cavalheiro, recebeu aplausos de Érico Veríssimo, Nelson Werneck Sodré, Antonio Cândido, que inclusive prefaciou a reedição pela Nova Fronteira em 2003 e da Editora 34 em 2018. Foi o livro do ano em 1946, lido por Homero Senna, Brito Broca, Wilson Martins, Guimarães Rosa, Clarice Lispector. Êxito absoluto! Incursionou pela poesia, adaptando o clássico "O Suave Milagre", de Eça de Queiroz. Foi a maga das crônicas, de que é exemplo aquela que chamou de "Julho", e da qual extraio pequeno trecho: "Quando esta crônica for lida, já estarei na chácara, em pleno Vale do Sol. É julho. É julho das noites límpidas, de lua líquida, de céu profundo, de estrelas geladas. É julho e a mangueira se enfolhou de novo e se cobriu de flores. Contra o luar, ela parece solene, grandona, misteriosa. Muito alta, toca as nuvens e as galáxias. Por ela roçam os anjos de asas imensas. De dia, ela perde em espessura, despojada da escuridão e ganha em juventude. ... Na chácara o sol se levanta cedo. Às sete da manhã já está de fora, gloriosamente, acabando de esfiapar um resto de neblina. E se reclina sobre a mangueira feliz, reverdecida, tonta. Quem o anuncia é a corruíra, que fez um ninho complicado nos ramos do maricá, depois que brigou com a pitangueira". Júnia e Joaquim Maria Botelho produziram obra-prima, a justificar a gratidão dos leitores, pois partilham conosco esse tesouro intangível e precioso, que foi conviver com a mulher extraordinária que foi Ruth Guimarães. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião Em 28 12 2022 voltar |
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