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O TORMENTO DE SANTIAGO
Acadêmico: José Renato Nalini
Lourival Serejo, com sua experiência de intelectual arguto e magistrado, soube reconstituir características detectáveis em alguns magistrados brasileiros,

O tormento de Santiago

Lourival de Jesus Serejo Sousa é desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão, que presidiu entre 2020 e 2021. Hoje preside a Academia Maranhense de Letras, onde ocupa a Cadeira 35. Culto e erudito, publicou o livro “O Tormento de Santiago”, que deveria ser lido por todos os magistrados e pelos que militam no foro judicial.

O personagem principal é um infrator que confessa haver cometido um crime. Foi preso e admite: “perdi a voz e a razão. Tornei-me um autômato, levado pelos homens vestidos de preto. A natureza do meu crime retirava-me qualquer respeito por parte dos agentes policiais. Era empurrado, gozado e ameaçado”. Boa reflexão para um Brasil cuja Constituição garante a dignidade do encarcerado.

Não se sabe qual o crime cometido. Vai procurar um advogado que explicou os trâmites do processo, comentou sobre a duração da lide e a incerteza do desfecho, “pois, segundo ele, a Justiça sempre surpreende; nunca se pode afirmar, com certeza, o resultado de um julgamento”.

Vem aí a parte mais interessante do livro. O advogado passa a descrever os perfis dos possíveis juízes que se encarregarão da demanda criminal. Como observador arguto, o advogado descreve o alfabeto, de A a Z, com as principais características dos magistrados que poderão receber a causa.

Lourival Serejo, com sua experiência de intelectual arguto e magistrado, soube reconstituir características detectáveis em alguns magistrados brasileiros, pois a nossa Magistratura é plural e diversa. Com certeza, os arquétipos são comuns e todos aqueles que têm intimidade com a cena judiciária identificarão as evidentes analogias que existem. Pois a carreira atrai espécimes de todos os matizes, e o desempenho do ofício de julgar vai moldando os caracteres e reforçando tendências inatas ou adquiridas durante a lida.

Quem é que não conhece um juiz que “é o tipo da pessoa que se costuma chamar de compenetrada. Sempre solene, tem uma brancura de solidão, que lembra uma autoridade religiosa, forjada no claustro e no estudo daí seus gestos e sua voz serem pontuais”.

Ou a magistrada sempre sorridente, mas “há em seu sorriso uma forte dose de camuflagem. Na verdade, ela é profundamente exigente, prepotente e, até mesmo, impiedosa com seus subordinados”. Outro exemplar é o daquela que, “antes de ser juíza, é dona de casa, mulher e mãe. Sobretudo mãe. O tempo que sobra dos afazeres domésticos e maternais ela dedica à magistratura, daí por que chega sempre atrasada ao serviço”.

Um outro vulto bem conhecido é o do juiz para o qual o trabalho “é algo que o absorve por inteiro. Na realidade, ele é uma máquina de trabalhar. De tanto trabalhar, ele se esquece de pensar e de estudar. Por isso seus conhecimentos e seu raciocínio são curtos”. É aquele julgador para quem “a teimosia se chama convicção, leva-o a julgamentos firmes, que enveredam por caminhos às vezes polêmicos. No tratamento com acusados, ele é vigoroso por aplicar a fórmula mais curta e severa na formação do juízo de culpabilidade: réu é réu”.

Outro modelo frequente é o do magistrado que, “de tanto gostar de conversar, os processos se acumulam em sua secretaria, a ponto de se elevarem como um muro, em sua mesa de trabalho”. Hoje, o acúmulo é virtual. Se não houver cobrança da Corregedoria Geral ou da Corregedoria Nacional, o volume o não assusta, pois tornou-se digital.

E o juiz vaidoso? “Narcisista por natureza, ele cuida bem da sua roupa e da sua aparência, nos mínimos detalhes, e ainda observa a dos outros para comparar ou criticar”. Outro tipo conhecido: o daquele que ingressa na magistratura “procurando a certeza de uma boa aposentadoria e uma ascensão social, que lhe permitisse granjear prestígio e respeito”. Ainda existe aquele que “não se mata por estudos nem por outra atividade cultural. Sua meta é a tranquilidade”.

Juízes há – e não é só Lourival Serejo quem o sabe – “de visão e conhecimentos curtos, à evidência”. Mas eles se consideram grandes sábios, mestres “de todos, uma reserva de sabedoria”. Há também aquele julgador “calculista, pensativo, ferino, inconsequente, tudo pode ser dito da sua personalidade…homem de poucos amigos e poucas palavras. Mas estas, quando saem de sua língua, são sempre incisivas e cortantes”.

A arrogância e a prepotência podem se aninhar nas mentalidades frágeis, que se iludem com o poder que emana da figura simbólica do juiz. Pode gerar pessoa em que “o mundo se resume nele e fica abaixo da sua cabeleira bem cuidada. Ninguém o supera em trabalho, competência, dedicação. Tudo isso pela sua ótica”.

Delicioso o percurso da tipologia serejiana. Para não cometer spoiler, já cometendo, o réu acaba condenado e não quer recorrer. Vale a pena ler o livro para ao menos tentar reconhecer alguns traços de conhecidos nossos. Compreende-se por que o tormento de Santiago é o de todos os réus criminais do Brasil.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião
Em 12 11 2022



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