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Acadêmico: José Renato Nalini Até os réquiens ruíram no Brasil que perdeu a cortesia, a sensibilidade e a admiração pelos que nos deixam para sempre.
Até os réquiens ruíram… A humanidade parece ter perdido bastante em polidez, ritos de amizade, costumes que eram rigorosamente respeitados. Assim, as despedidas de pessoas ilustres, eram objeto de muitos artigos em jornais e a praxe era o uso da palavra junto à tumba. O Brasil tem perdido filhos extraordinários. Já não se verifica a mesma intensidade nos réquiens. Alguns se vão sem qualquer menção no necrológio, cada vez mais sintético. Onde foi parar a eloquência? Já foi um atributo dos bacharéis e o Brasil é campeão em bacharelismo. Tem mais faculdades de direito do que a soma de todas as outras existentes no restante do planeta. Só que a tônica é a instrumentalização. Ensina-se a litigar em juízo. Ficou sepultado na história o hábito dos cursos de oratória. E o processo tupiniquim é típico da oralidade. Uma teoria, outra prática… Por isso é com algum deleite e alguma tristeza que se lê a despedida de Ronald de Carvalho, escrita por Rodrigo Octávio Júnior, no livro “Velhos amigos”. Ele deixa evidente a tristeza que o acometeu com a partida do companheiro de letras: “Com Ronald de Carvalho não morreu, apenas, um poeta. Desapareceu para sempre, a figura mais singular de uma geração. Mescla de inquietude e equilíbrio espiritual, foi Ronald o mais empolgante intelectual de sua época. Mestre desde menino, estudou toda a curta vida que viveu. Nunca se contentou com o que tinha. Sempre quis enxergar além da linha do horizonte”. Depoimento que deve servir de inspiração para a juventude contemporânea: estudar sempre. Estudar por prazer. Nunca se alcançará o termo final: quem é que pode afirmar não precisar de mais conhecimento? Rodrigo Octávio menciona as palavras de Augusto Frederico Schmidt à beira do túmulo: “estamos penetrando na ausência de Ronald, obstinados e incrédulos ainda. Não é possível alcançarmos esta vontade incompreensível, que veio apagar uma das grandes e verdadeiras luzes da inteligência humana em terras do Brasil”. Também se despediu do poeta o grande Alceu Amoroso Lima: “em 1913, quando levaste a Paris o teu primeiro livro de versos, que tiveste a coragem impiedosa de destruir, para nos presentear depois com essa “Luz Gloriosa”, que foi tua radiosa alvorada nas letras – já eras, entre nós, o primeiro na cultura e no bom gosto. Entravas para a vida de homem, subindo sempre”. O amigo que escreve seu elogio diz ter sido testemunha dessa radiosa alvorada. E recorda o episódio ocorrido no quarto do Hotel Balzac, em Paris, no ano de 1913: “Era no inverno, pelos meses de fevereiro ou março. As árvores de Paris andavam com saudades das folhas e o asfalto das ruas umedecido pelas chuvas constantes. Fazia frio. Muito cedo ainda, em companhia de Álvaro Moreira e Felipe de Oliveira, fui aguardar a chegada do trem em que deveria chegar Ronald de Carvalho. Era o presente bom que o Brasil nos mandava. Ao nosso encontro veio ele, de braços abertos, alegre, sorrindo, falando. E trazia um livro de versos pronto para entrar no prelo”. Eram tempos em que a juventude dourada do Brasil se abeberava nas fontes da Cidade Luz. “Incorporou-se, então, à nossa vida. Foi nosso companheiro na visita aos cantos do Paris desconhecido. Juntos fomos ouvintes do curso sobre Shakespeare professado na Université des Annales, por Jean Richepin e conosco vibrou no Chatelet, ouvindo a primeira representação de Marie Magdeleine, de Maeterlinck”. O relato prossegue com a chegada de Ronald ao quarto de hotel em que Rodrigo Octávio estava hospedado. O poeta falou: “Vocês se recordam de nosso último encontro, aqui neste mesmo quarto, há uma semana, poucos dias após minha chegada? Trouxera eu do Rio um volume de versos, o primeiro de um tríptico projetado: Luz, Cor, Som. A opinião de Hermes Fontes sobre meu livro me entusiasmara. Julguei-o definitivo! No entanto, em uma semana tudo mudou! Desta mesa levei dois livros de Samain. Li-os de um fôlego. E na mesma emoção misturei aqueles versos com o ar que aqui se respira. Não é que eu sinta como Sumain. Nem sei bem ainda o que se passou. Mas houve uma transformação! Queimei meus velhos versos no fogão do meu quarto! Viraram fumaça no céu parisiense. E aqui está o resultado: “Luz Gloriosa”, todo escrito nessa última semana”. A coragem de queimar um livro inteiro, para escrever em uma semana o outro, mostra como eram os poetas brasileiros àquela altura da História. Rodrigo Octávio continua a tecer loas a Ronald de Carvalho, com emoção e verve. Já não se fazem mais elogios assim. Até os réquiens ruíram no Brasil que perdeu a cortesia, a sensibilidade e a admiração pelos que nos deixam para sempre. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião Em 08 11 2022 voltar |
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