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JOSÉ BONIFÁCIO, O RESILIENTE
Acadêmico: José Renato Nalini
Cada vez mais, José Bonifácio se impõe como paradigma de ética, integridade e devoção à causa pública. Algo nem tão comum em nossos dias.

José Bonifácio, o resiliente

Os duzentos anos da Independência do Brasil não reverenciaram, o quão se devia, a figura do “Patriarca”, o santista José Bonifácio de Andrada e Silva. Um homem culto, erudito, patriota e injustiçado. Foi ele quem liderou os paulistas que fizeram Pedro, o Príncipe Regente, romper os laços que uniam o Reino do Brasil ao de Portugal. Foi Primeiro Ministro do Imperador que, após receber uma denúncia sobre a tirania dos Andrada e Silva em São Paulo, exonerou, sumariamente, aquele que era a inspiração mais saudável do novo Império.

Como “santo da casa não faz milagre”, é preciso buscar em estrangeiros uma análise que resgate a honra e o prestígio de José Bonifácio. Encontro no “Diário de uma viagem ao Brasil”, da inglesa Maria Graham, um testemunho valioso de quem foi José Bonifácio.

Ela começou a conviver com sua família só depois de rechaçado pelo impetuoso Imperador. Diz a britânica, depois encarregada da educação da Princesa Maria da Glória, que foi Rainha de Portugal: “Não há lugar em que possa passar meia hora com mais prazer e proveito do que na família deste ex-ministro. Sua mulher é de origem irlandesa, Narcisa O’Leary de Andrada, senhora da maior amabilidade e gentileza, realmente admiradora do valor e do talento do marido; e todos os sobrinhos e outros parentes que ali encontro, revelam-se superiores, em educação e conhecimentos, à maior parte das pessoas que vejo. Mas é o próprio José Bonifácio que me desperta maior interesse. É um homem pequeno, de rosto magro e pálido. Suas maneiras e sua conversa impressionam logo o interlocutor com a ideia daquela atividade mental incansável e que mais parece consumir o corpo em que habita. A primeira vez que o vi na intimidade foi quando deixou de ser ministro. Suas ocupações, antes desse tempo, deixavam-lhe pouco tempo para a sociedade privada. Estava curiosa por ver a retirada de um homem público. Encontrei-o cercado de moços e crianças, algumas das quais ele punha nos joelhos e acariciava; via-se facilmente que era muito popular entre a gente pequena. Para comigo, como estrangeira, foi da maior cerimônia ainda que delicadamente polido, e conversou sobre todos os assuntos e de todos os países. Ele visitou a maior parte dos da Europa”.

Maria Graham era apaixonada por livros, tanto que passava mais de quatro horas por dia na Biblioteca Nacional. Por isso impressionou-se com a de José Bonifácio: “Sua biblioteca estava bem provida de livros em todas as línguas. A coleção de química e de mineração é particularmente extensa e rica em autores suecos e alemães. Estes são, realmente, assuntos de peculiar interesse para o Brasil e foram naturalmente de primeira plana para ele. Mas seu encanto é a literatura clássica. Ele próprio é poeta, e não de ordem inferior. Talvez meu conhecimento de português não me dê autoridade para julgar quanto ao veículo da linguagem de sua poesia; mas se a elevação do pensamento, as combinações novas e belas, a aguda sensibilidade e o amor da beleza e da natureza são essenciais à poesia, os poemas que ele me leu hoje possuem tudo isso. Há um, particularmente, “A Criação da Mulher”, brilhante como o sol sob o qual foi escrito, e tão puro quanto sua luz”.

Ela acrescenta que “talvez alguns de seus méritos derivem de sua maneira de ler, que não sendo aquilo que se chama uma bela leitura, é cheia de caráter e de inteligência”. Em outra parte do livro, Maria Graham menciona que o Imperador não encontraria pessoa de igual quilate para auxiliá-lo a governar. E a perda foi dupla, porque com sua exoneração, também deixou de ser Ministro da Fazenda o irmão de José Bonifácio, Martim Francisco de Andrada e Silva. Neste ponto, Maria Graham, embora discretamente, menciona a idoneidade de quem deixou o cargo, nem de longe comparável com a de quem assumiu em substituição.

José Bonifácio estava feliz nesse ostracismo político. Isso a inglesa constatou: “Ninguém diga que ele está muito infeliz para poder receber qualquer consolo”. Esse primeiro encontro entre o Patriarca e Maria Graham foi em 24 de setembro de 1823. Quando Pedro I deixou o Brasil e voltou para Portugal, para defender o trono para sua filha Maria da Glória, que o tio, Dom Miguel, queria usurpar, quem foi que ele deixou como tutor do futuro D. Pedro II e de suas irmãs? Exatamente José Bonifácio. Ele sabia que poderia contar com a lealdade e com a excelência de qualidades de caráter do amigo a quem dispensou tratamento iníquo logo no início de seu curto Império.

Cada vez mais, José Bonifácio se impõe como paradigma de ética, integridade e devoção à causa pública. Algo nem tão comum em nossos dias.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião
Em 05 11 2022




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