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RAÍZES ESCRAVISTAS DO ASSÉDIO ELEITORAL
Acadêmico: José de Souza Martins
A atual situação política criou uma cultura de violação do direito do eleitor à verdade de seu voto.

Envolvendo 1.284 empresas, ocorreram 1.633 denúncias de assédio eleitoral, 1.572 das quais se deram após o primeiro turno das eleições, no comércio, na indústria e no agronegócio.

Muitos empregados atingidos por atos de coação para que votassem em quem o patrão indicava. Deviam as vítimas apresentar comprovante do voto, fotografado com o celular, caso contrário seriam demitidas. Processos foram abertos, pelo Ministério Público do Trabalho.

Já no período eleitoral de 2018, foram 212 os casos chegados ao conhecimento do MPT. As denúncias de agora, quatro anos depois, no segundo turno desta eleição de 2022, foram seis vezes mais numerosas. A atual situação política criou uma cultura de violação do direito do eleitor à verdade de seu voto.

A ocorrência não é tratada como indício de prática da escravidão, porque tratada como mero crime eleitoral, quando é, na verdade também delito laboral. O patrão que assedia seu empregado e cerceia sua vontade cidadã de decidir seu voto de conformidade com o que lhe dita a consciência política, priva-o do direito de ser dono de suas decisões. Isso ocorria com o escravo, que não era dono de sua vontade. Ao ser vendido vendia o traficante na sua pessoa não só seu corpo mas todos os seus atributos, sua própria consciência e seu imaginário onírico

Não foi por acaso que os autores da primeira Constituição republicana e das leis dela decorrentes tivessem estabelecido regras de restrições eleitorais em relação a pessoas que embora juridicamente livres viviam em situação social de confinamento e tutela da vontade, como os recolhidos de instituições conventuais e as praças de pré, sujeitas a restrições de liberdade que não garantiam fossem elas donas de querer político.

Ainda assim, foi comum entre nós, na Primeira República, o voto de cabresto mediante o uso de vários recursos sociais de cerceamento do direito de expressão da vontade política, formas de coação de agregados e dependentes dos régulos de roça, que adotavam meios de sujeição de seus trabalhadores.

A verdade é que esses arcaísmos políticos ainda persistem em várias situações, especialmente na das empregadas domésticas. São elas vítimas da aplicação, aparentemente inocente, de técnicas de ressocialização para a sujeição. Os vínculos de trabalho as situam na borda do direito e do vínculo racional e contratual de trabalho, tornando-as vulneráveis à manipulação e direcionamento da vontade. Na prática, uma situação não só de assédio laboral, mas de sujeição escravista.

Em casos assim, o assédio eleitoral se situa num conjunto de crimes conexos ao de escravidão, sujeito a punição bem mais grave do que a mera multa.

O combate à escravidão no Brasil contemporâneo não tem levado em conta essa forma de sujeição ilegal, que é a do assédio eleitoral, porque escravidão, no imaginário brasileiro, tem sido, equivocadamente, reduzida à interpretação econômica na chamada escravidão por dívida. Quando, na verdade, sua forma mais grave é a que resulta não só em lucro extraordinário derivado da sobreexploração do trabalho. Mas também em poder indevido resultante, indiretamente, da sujeição laboral imposta a empregados por coação e medo.

Os casos de assédio eleitoral, entre nós, desde 2018, coincidem com sua prática por negociantes e patrões cujas opções políticas são ou foram majoritariamente pela candidatura de Bolsonaro à Presidência da República. O que os situa num conjunto de procedimentos sociais arcaicos, de um projeto político orientado pelo ideal do retrocesso social de uma sociedade baseada na obediência dos subalternos a seus senhores. Negação da sociedade democrática e moderna, que se baseia na igualdade jurídica, no discernimento e no direito de exprimi-lo, nas questões sociais e políticas.

Com apoio de igrejas evangélicas fundamentalistas, que se tornaram coadjuvantes do autoritarismo do regime do atual governo, o medo tornou-se um item da estrutura de poder e um modo de dominações religiosa e política que se completam. Nos dois casos, o medo é provocado intencionalmente para criar insegurança e colocar sob sujeição milhares de pessoas destituídas de vontade própria e inaptas para o exercício livre da cidadania.

Um dos aspectos significativos da ordem política retrógrada que define o poder no Brasil, foi que, minutos depois do resultado da eleição de 30 de outubro, multidões de evangélicos, em várias regiões do país, entraram em grande estado de exaltação. De joelhos, braços para cima, revestidos da bandeira ou de panos verdes e amarelos, imploravam a Deus que impedisse que suas igrejas fossem fechadas. O medo manipulado os privara de discernimento político e cidadão.





Publicado no jornal Valor Econômico, 4 de novembro de 2022.



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