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A JUSTIÇA NO SÉCULO 19
Acadêmico: José Renato Nalini
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Mudam-se até as verdades, nesta República da Hermenêutica, da polarização e das narrativas, capazes de iludir letrados e iletrados.

A Justiça no século 19

Em sua “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, Jean Baptiste Debret descreve a organização judiciária do Brasil em 1816. Começa com os “Tribunais Ordinários”, cujos juízes são escolhidos pelos habitantes do país, entre os cidadãos respeitáveis. Ao lado deles há juízes de fora, nomeados pelo Imperador. Ambos julgam em primeira instância as causas civis e os recursos são apreciados pelos ouvidores, magistrados nomeados e pagos pelo governo, residentes na capital.

Já tivemos eleição de juízes. Algo a se pensar quando há tanta celeuma em relação ao funcionamento do Judiciário e à escolha de magistrados das Cortes Superiores pela mera vontade do mandatário da Nação.

A cada ouvidor correspondia um escrivão de ouvidoria. Nas maiores cidades – Salvador e Recife – havia Cortes de Justiça chamadas Relação. Das decisões destas, recorria-se à Corte Suprema do Rio, chamada Casa de Suplicação, última instância de todas as causas civis e militares. Era composta de um Presidente, regedor da Justiça, de um chanceler e dezoito magistrados designados pelo título geral de desembargadores. Oito deles eram os agravistas e os demais se chamavam extravagantes.

Interessante o nome “Casa de Suplicação”: os jurisdicionados continuam a “suplicar” que o Judiciário se manifeste em oportuno. O inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição, que garante célere tramitação dos processos é mera retórica.

O Brasil possuía uma estrutura semelhante à francesa. Ao lado do tribunal superior, estava a Mesa de Desembargo do Paço, uma Corte suprema e especial, que conhecia em última instância dos negócios judiciários de todos os processos dos cidadãos. Tribunal encarregado de expedir indultos e privilégios, de conceder a revisão dos processos, de emancipar os menores e de fazer devolver às vítimas os bens de que tenham sido despojadas.

O Brasil, nesse período da chegada de D. João VI ao Brasil possuía também Tribunais Administrativos e Mistos. Um Capitão-Mor, com funções análogas às do “Maire” francês, e um Corregedor, encarregado de inspecionar as aldeias sujeitas à sua jurisdição e de zelar pela aplicação da justiça. Atuavam separadamente, cada qual com sua competência.

O contencioso administrativo seria interessante, para que o Estado não fosse o maior cliente da Justiça, algo anômalo e que – seguramente – não tem respondido a contento às aspirações dos brasileiros lúcidos.

O chamado “Senado da Câmara”, comparado às municipalidades gaulesas, era composto de camaristas eleitos pelos cidadãos. Os tesoureiros eram chamados Procuradores e três deles eram Vereadores. Sua função: recolher e mandar educar as crianças abandonadas, manter em bom estado os caminhos, zelar pela construção das pontes e das grandes estradas e outras atribuições. Suas decisões tornavam-se executivas por intermédio dos juízes de fora.

Já existiam os Tribunais Militares, inspirados também no modelo francês. Tudo o que guardava pertinência com o Exército e Marinha – não existia, por óbvio, a Aeronáutica – era levado ao Conselho Supremo Militar, instalado em 1808. Conviviam com os Tribunais Eclesiásticos. A Junta da bula da cruzada percebia a importância das dispensas eclesiásticas. A Mesa da Consciência e Ordens possuía jurisdição civil, confiada ao clero, na pessoa de um sacerdote com o título Vigário de vara. De suas decisões podia-se apelar para o Vigário-Geral.

Processo entre sacerdote e leigo, quando este é o demandista, a justiça competente era a eclesiástica. O vigário de vara era também juiz de casamentos. Ninguém se casava sem o seu consentimento. Como esse processo era dispendioso, Debret comenta, baseado em Saint-Hilaire, que os pobres eram obrigados a viver em culposa desordem, eufemismo de estilo da época, para designar o estado de concubinato.

Os camaristas exerciam sua função gratuitamente, mas recebiam uma gratificação com o nome de “propina”. Hoje o sentido é outro. Mas a Justiça também é outra. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Mudam-se até as verdades, nesta República da Hermenêutica, da polarização e das narrativas, capazes de iludir letrados e iletrados. Valha-nos o Deus dos aflitos!

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião
Em 01 11 2022



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