Compartilhe
Tamanho da fonte


É BOM NÃO ESQUECER
Acadêmico: José Renato Nalini
“Que beleza o convite de Jean Cocteau: fechemos com doçura os olhos dos mortos. Com a mesma doçura, deveríamos abrir os olhos dos vivos”.

É bom não esquecer

O Brasil é um país desmemoriado. Esquece rapidamente pessoas inesquecíveis. A ânsia de cortejar os detentores de cargo, aqueles que podem retribuir de imediato às homenagens, entrega ao olvido figuras excepcionais. Há muitas delas merecendo uma revisita reverencial.

Uma delas é Ulysses Guimarães, o paulista de Rio Claro que enfrentou o autoritarismo com classe e elegância. Ingredientes que desapareceram na vida política dos anos recentes.

O livro “Notáveis Bacharéis na Vida Boêmia”, de Pedro Paulo Filho, mostra algumas passagens da vida de Ulysses Guimarães que trazem instigante material de reflexão.

Uma delas: Ulysses publicou uma nota pelo MDB, o Partido da Oposição, considerada excessivamente dura pela Arena. Afirmou que “o Congresso não é a cocheira do Palácio, nem os senadores e deputados são cavalariços”. Jarbas Passarinho replicou também com rudeza: “A notoriedade que busca é a da grosseria, a da vulgaridade, da palavra recolhida às vielas escuras e que, como agora, trai sua formação pedante e elitista”. Ulysses Guimarães não replicou.

Teve coragem de ser anticandidato em 1973, durante o regime militar. Em sua campanha, invocava a Encíclica Populorum Progressio, para afirmar que “o desenvolvimento é o novo nome da paz. Desenvolvimento sem liberdade e justiça social não tem esse nome. É crescimento ou inchação, é empilhamento de coisas e valores, é estocagem de serviços, utilidades e divisas, estranhas ao homem e aos seus problemas”.

Muito oportuna a recordação dessas palavras, inclusive o seu lema de convencimento do eleitorado: “A caravela vai partir. As velas estão pandas de sonhos, aladas de esperança. O ideal está ao leme e o desconhecido se desata à frente. Navegar é preciso. Viver não é preciso. Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que, em breve, possa gritar ao povo brasileiro: “Alvíssaras, meu Capitão. Terras à vista. Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade”.

Sua autoridade moral se sobrepunha à autoridade arbitrária, em inúmeras ocasiões. Era um democrata sem medo de defender a Democracia. Bradava, briosamente, que “a cidadania começa no analfabeto. Só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. O inimigo mortal do homem é a miséria. Não há pior discriminação do que a miséria. O Estado de Direito, consectário da igualdade, não ode viver com o estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria”.

Quanta verdade nestes tempos de trinta e três milhões de famintos, outros tantos milhões de desempregados, quase toda a população sem saneamento básico, sem meio ambiente saudável e equilibrado, sem educação de qualidade ou saúde compatível com as necessidades, oprimido com a maior carga tributária do planeta e assistindo à derrocada da democracia representativa.

Quando deixou a presidência do MDB, declarou: “Vou livre como o vento, transparente e cantando como a fonte. Desço. Vou para a planície, mas não vou para casa. Vou morrer fardado, não de pijama”.

Era um homem bem-humorado. Sabia fazer ironia fina. Suas frases ficaram na História, tais como “A impaciência é uma das faces da estupidez. Joaquim Nabuco admoestou que o tempo não perdoa o que se faz sem ele”. Ou “a grandeza do homem é mais importante que a grandeza do Estado, porque a felicidade do homem é a obra-prima do Estado”.

Também falou: “o poder não corrompe o homem; é o homem que corrompe o poder, e, em política, estar com a rua não é o mesmo que estar na rua”. Dizia ainda: “dizem que tenho estrela. Pelo árduo trabalho em madrugadas e vigílias, para que ela brilhe; vivo passando kaol nessa estrela. Mas, às vezes, irritado, falava: “Benzinho e besta começam com “b”. Desconhecem a palavra “não”. Sendo mulher, estaria sempre grávida”.

Para rematar, porque serve para os brasileiros neste emblemático 2022: “Que beleza o convite de Jean Cocteau: fechemos com doçura os olhos dos mortos. Com a mesma doçura, deveríamos abrir os olhos dos vivos”.

Os vivos precisam estar com os olhos bem abertos nesta fase de tamanha polarização. E a frase adquire outra conotação, quando se sabe que Ulysses Guimarães não teve quem lhe fechasse os olhos. Seu corpo nunca foi encontrado nas águas entre Angra dos Reis e Ubatuba, no infausto acidente de helicóptero em que perdeu a vida.


Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 24 10 2022



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.