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Acadêmico: José Renato Nalini Mais relevante do que jejum, abstinência, penitência, rezas e peregrinações, é a “obediência à lei moral.
Existe moral contemporânea? Muitos de nós têm razão ao descrerem da validade dos ordenamentos morais, tamanhos os desmandos praticados em todos os ambientes. Essa constatação é muito antiga, conforme assinalava Gilles Lipovetsky em conferência proferida há vinte e um anos, no Canadá. Dizia ele que “um grande número de homens e de mulheres pensa que não há mais moral e que por toda parte avançam o cinismo, o egoísmo e a anarquia de valores”. Fenômeno não recente, pois “desde Rousseau, nada é mais comum que a temática da decadência da moral e da cultura. Mas parece que esse sentimento de dissolução da moral se acentuou com o recuo da influência da Igreja, com a ascensão da época do rei dinheiro e do neo-individualismo”. O que diria hoje Lipovetsky, se estivesse no Brasil e visse o recrudescimento da exigência ética, a partir de tanto uso político e ideológico da religião cristã? Em nome da liberdade de religião, a Constituição do Brasil permitiu que se multiplicassem as Igrejas, adquirindo denominações até bizarras e todas elas fazendo jus à imunidade tributária. Nada mais fácil do que fundar uma Igreja no país e passar a se beneficiar da possibilidade de todas as despesas, inclusive os salários, não serem tributáveis, o que estimula o surgimento de pessoas que nem sempre ostentam conduta compatível com a verdade do Evangelho. A imersão na cultura ultra individualista de bem-estar, êxtase do corpo, sucesso pessoal, fama e celebridade, absoluta autonomia subjetiva, propõe um paradoxo. Como conciliar o apelo à ética em todos os discursos, principalmente daqueles que não sabem o que é ética e não querem saber dela em sua vida, com o desaparecimento da ascese, do sacrifício, da entrega a uma causa coletiva e de assumir uma vida pelo semelhante? Há vinte anos, Lipovetsky distinguia três eras da moral. A mais longa fase era a da era teológica. Uma ética vinculada aos mandamentos divinos. A Igreja pautava a vida moral dos indivíduos. Não havia moral separada da religião. Ou subordinar-se ao dogma “fora da Bíblia não há salvação”. A segunda fase começa no século XVII e vai até o século XX. É a era laica moralista. Substitui-se a Igreja pela razão. Seria a “moral natural”, na concepção de Voltaire e de Kant. Os deveres dos homens em relação aos homens sobrepõem-se aos deveres do homem para com a divindade. Seria interessante que os “líderes” de algumas seitas, com sua pregação de intolerância e de intensificação do preconceito, lessem o que disse Pierre Bayle, no final do século XVII: “Qualquer dogma particular, apresentado como parte das Sagradas Escrituras, ou de outra forma qualquer, é falso quando refutado pelas noções claras e distintas da luz natural, principalmente do ponto de vista da moral”. Um texto escrito em 1686, com um eloquente acréscimo: “Qualquer sentido literal contendo a obrigação de praticar crimes é falso. Criminosas não são as ortodoxias religiosas, mas as perseguições, os suplícios, o fanatismo, as guerras santas, tudo o que pisoteia as leis invioláveis da moral natural”. Mais relevante do que jejum, abstinência, penitência, rezas e peregrinações, é a “obediência à lei moral, que prescreve a tolerância, a liberdade religiosa, o direito à consciência errônea”. A terceira fase é a pós-moralista. Lipovetsky explica: “Sociedade pós-moralista, não sociedade pós-moral; sociedade que exalta mais os desejos, o ego, a felicidade, o bem-estar individual, do que o ideal de abnegação”. Derrubados os imperativos do dever sacrificial, opta-se pela felicidade pessoal, priorizam-se os direitos do indivíduo e não mais os seus deveres. Se na esfera individual parece “valer tudo”, não é diferente na esfera social ou coletiva. Ninguém ousa pedir ao indivíduo que “morra pela pátria”, o que foi observado por Luc Ferry, comparando a escola atual à de seu tempo de menino. Só que ainda existe quem “morra por seus filhos” e, o mais incrível, há quem “morra por seus pais”. A moral contemporânea refugiou-se na esfera interindividual, “liberada da ideia do imperativo permanente. Isso não significa que não há mais moral, mas que a moral dominante em nossas sociedades é uma moral interpessoal e emocional, indolor e não imperativa, uma moral adaptada aos novos valores de autonomia individualista”. Quanto maior o estágio civilizatório de uma nação, mais se nota o culto ao presente, mas a preocupação com as futuras gerações também merece apoio, o que é próprio da sensível consciência ecológica. “Apesar da cultura neo-individualista, os indivíduos continuam a exprimir indignação diante do que lhes parece escandaloso. As reações de indignação permanecem vivas: é a prova de que o senso moral não se extinguiu”. Que ele persista, pois os paradoxos morais de nossa sociedade, que poderia usurpar da qualificação bilaqueana para o português os adjetivos “inculta e bela”, prosseguirão e nos farão optar por antagonismos angustiantes. Estejamos atentos e afinemos nosso órgão moral: a consciência. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião Em 23 10 2022 voltar |
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