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DOMAR CAVALGADURAS
Acadêmico: José Renato Nalini
Domar as cavalgaduras que impõem suas insuficiências à população é a missão hercúlea que se reclama à lucidez residual ainda detectável neste país.

Domar cavalgaduras


A falta de polidez já era sentida há décadas. Nada obstante, a grosseria foi adubada e a urtiga cresceu desenvolta, a ferir sem limites. Famílias se agridem, amizades se desfazem, há um olor odioso a impregnar quase todos os ambientes. Até locais destinados à oração assistem episódios inadmissíveis para uma sociedade que se diz civilizada.

Sérgio Buarque de Holanda se cansou de explicar que o “brasileiro cordial” de seu “Raízes do Brasil” não era o homem doce, terno, delicado. Era aquele que reagia “ex corde”, a partir de seu temperamento. Coração cruel o de boa parte dos brasileiros no século 21.

Por isso, é saudável mergulhar em leituras que contradigam essa perigosa tendência. A grosseria torna o mundo mais feio. Ainda mais feio do que já é, ou do que tentam fazer os que destroem florestas, destroem reputações, destroem sonhos.

Um desses livros é “A era da empatia”, escrito por Frans de Waal. Para ele, “a empatia está na moda, a ganância ultrapassada”. Assim tivesse razão. Sua mensagem é de que “a natureza humana tem uma enorme contribuição a oferecer para que esse esforço – corrigir o déficit de empatia – seja bem-sucedido”.

Sua visão de mundo é científico-otimista. Indaga: “Somos nós os responsáveis pela guarda de nossos irmãos? Deveríamos ser? Ou essa função apenas atrapalharia os propósitos pelos quais estamos aqui na Terra – para produzir e consumir, segundo os economistas; para sobreviver e nos reproduzir, segundo os biólogos?”.

Recorda que Adam Smith, em sua “A Riqueza das Nações”, inicia sua mensagem com texto clássico: “Por mais egoísta que se possa admitir que seja o homem, é evidente que existem certos princípios em sua natureza que o levam a interessar-se pela sorte dos outros e fazem com que a felicidade destes lhe seja necessária, embora disso ele nada obtenha que não o prazer de a testemunhar”.

Uma das mais sangrentas revoluções que a humanidade já assistiu, a gloriosa Francesa de 1789, invocava a fraternidade como um de seus pilares. “Abraham Lincoln invocou os laços que unem as pessoas e Theodore Roosevelt afirmou com ardor que a solidariedade é ‘o fator mais importante na produção de uma vida política e social saudável’. Mas se isso é verdade, então por que esses sentimentos são muitas vezes ridicularizados e chamados – ora essa – de sentimentais?”.

Talvez porque a violência é uma companheira permanente da espécie considerada racional. Pode-se dizer que a humanidade vive em permanente guerra. Não é preciso uma Guerra da Ucrânia, que deveria envergonhar o mundo. Mas as guerras particulares nas competições, nos litígios, no menosprezo ao mais fraco, no preconceito contra as minorias, a insaciável fome de ouro, de prestígio, de fama e de glória.

Winston Churchill disse que “a história da raça humana é a guerra. Com exceção de breves e precários interlúdios, nunca houve paz no mundo, e muito antes de a história ter início, os conflitos homicidas eram universais e intermináveis”. Ele sabia das coisas.

Comparando-se as versões rousseauniana e hobbesiana quanto ao surgimento do Estado, parece evidente que Thomas Hobbes tinha razão: o homem é, mesmo, o lobo do homem. No livro “O Animal moral”, Robert Wright diz que “fingir altruísmo faz parte da natureza humana, e é algo tão frequente quanto a ausência desse sentimento”. Entretanto, a psicologia moderna e a neurociência aceitam que “somos pré-programados para estender a mão ao nosso semelhante. A empatia é uma reação automática sobre a qual temos controle limitado. Podemos suprimi-la, bloqueá-la mentalmente ou apenas deixar de agir com base nela, mas exceto por uma parcela extremamente pequena dos seres humanos – aqueles conhecidos como psicopatas -, ninguém consegue se manter emocionalmente imune à situação dos outros”.

Num Brasil em que tantos milhões passam fome diariamente, outros tantos milhões sofrem de insegurança alimentar, ou não têm condições de oferecer à sua família uma subsistência digna, seria mais fácil condoer-se com a sorte dos infelizes. Mas não é o normal. Ao inverso, parece recrudescer o excessivo egoísmo, o narcisismo, o consumismo, a tola fantasia de que somos eternos e não nos encontraremos com a indesejável das gentes.

Por este curto período que nos foi dado permanecer neste sofrido planeta, cultivemos a empatia. Algo que a educação deficiente que se oferta às crianças substituiu pelo adestramento e pela priorização da capacidade de memorizar informações. Domar as cavalgaduras que impõem suas insuficiências à população é a missão hercúlea que se reclama à lucidez residual ainda detectável neste país.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão/Opinião
Em 22 10 2022



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