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FREUD PRECISA EXPLICAR?
Acadêmico: José Renato Nalini
Os constitucionalistas devem repensar os seus dogmas. De que adianta um texto sagrado, se ele é vilmente ignorado por todas as pessoas que detêm autoridade?

Freud precisa explicar?

Um dos verbetes mais utilizados em nossos dias é “Constituição”. Esse pacto fundamental que organiza o Estado – ente tentacular que nos acompanha do nascimento à morte e até depois dela – e garante os direitos humanos, parece despertar sentimento emotivo e suscitar rompantes. Mero discurso. De que vale adotar um texto escrito, nele incorporar tudo o que é possível, se depois ele não vai ser cumprido?

Os paulistas foram até à morte por causa de uma Constituição em 1932. Sozinhos, enfrentaram o conglomerado de forças aglutinado pelo ditador – pois quem tem a “caneta” tem força para seduzir todo tipo de gente. São Paulo pagou um preço elevado por essa tentativa de reconstitucionalizar o Brasil. Desde 1932, serve para amparar a saúde de todos os brasileiros e de estrangeiros. Serve para sustentar a máquina perdulária que produz orçamento secreto e aumenta os Fundões eleitoral e partidário. Mas tem uma sub-representação no Congresso Nacional, o que é trágico numa era em que o Parlamento reassume as rédeas do governo.

Entretanto, ninguém nega que se esteja sob a égide de uma Constituição. O que significa isso?

Compare-se a situação dos Estados Unidos e a do Brasil. Lá, o texto constitucional vigora há duzentos e trinta e três anos! Sabe quantas vezes foi emendado? Vinte e sete vezes.

Enquanto isso, o Brasil teve uma Constituição outorgada em 1824, uma Constituição Republicana em 1891, uma reforma constitucional em 1926 que equivale a um novo pacto, a Constituição democrática de 1934, substituída pelo golpe do Estado Novo, que impôs à nação a “polaca” de 1937, a Constituição novamente democrática de 1946, rechaçada pelo documento revolucionário de 1967. Nova Emenda em 1969, finalmente a “Cidadã”, de 5 de outubro de 1988.

Consta que ela esteja vigorando desde então. Mas à custa de cento e trinta e uma emendas. O paradoxo é que a Constituição americana não exige quórum especial. Pode ser alterada como se modifica a lei ordinária. É do tipo flexível, enquanto o Brasil adota um texto fundante do tipo rígido. Há um rito muito especial para emendar a Constituição: quórum qualificado de três quintos em cada casa do Congresso – Câmara dos Deputados e Senado – em dois turnos. De tão difícil o sistema, só 131 vezes ela foi modificada…

Os americanos têm sobre a lareira a bandeira nacional e o texto da Constituição. As crianças sabem de cor o teor da Primeira Emenda ou da Quinta, pelo menos. E as crianças brasileiras?

Ferdinand Lassale é sempre citado porque afirmou que a Constituição não é senão um “pedaço de papel”. Nosso “pedaço de papel” é um calhamaço. A Constituição abrange de tudo. Miguel Reale Júnior e Carlos Ayres Brito disseram que ela cuida “da tanga à toga”. A vã pretensão de tornar algumas matérias inexpugnáveis fez com que ela crescesse. É a segunda maior do planeta, apenas superada pela Índia, país complexo com suas castas e uma cultura milenar muito diferente da nossa.

A suposta “blindagem” do texto constitucional é outra questão a ser debatida com serenidade. Como é que podem existir “cláusulas pétreas”, com o rigor nela tratado? O mundo está em profunda e intensa mutação. As novas tecnologias impuseram ao planeta uma revolução nunca vista e que deixou a ficção científica em situação desconfortável. A ciência foi muito mais destemida do que a imaginação.

Os constitucionalistas devem repensar os seus dogmas. De que adianta um texto sagrado, se ele é vilmente ignorado por todas as pessoas que detêm autoridade? Não se diga que é falta de cultura jurídica. O Brasil possui mais faculdades de direito, sozinho, do que a soma de todas as demais existentes no restante do planeta. O bacharelismo continua ativo e atraente nesta terra em que o esporte nacional deixou de ser o futebol para ser a litigância em juízo.

É desalentador constatar que a “Cidadã”, que já foi chamada “Ecológica”, permita a destruição da Amazônia e de todos os demais biomas e não haja condições de reagir à barbárie. É frustrante verificar que trinta e três milhões de brasileiros passam fome, enquanto a enunciação dos direitos fundamentais é uma proclamação infinita, porque os parágrafos ao artigo 5º, além dos seus setenta e oito incisos, garantem o ingresso no ordenamento jurídico de quantos direitos humanos puderem brotar da criatividade dos intérpretes ou dos inúmeros acordos que o Brasil assina – e não cumpre!

Será que Freud precisaria explicar o que acontece com o Brasil nesse tema tão discutido, tão debatido, tão analisado, mas tão pouco levado a sério?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 29 09 2022



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