Compartilhe
Tamanho da fonte


ANTOLOGIA DA MALDADE
Acadêmico: José Renato Nalini
Uma coletânea de maldades no mais estrito sentido do verbete é fácil de se arrolar em nossos dias.

Antologia da maldade


É importante que profissionais exitosos em áreas técnicas também consigam exercitar criatividade nas artes. Uma das mais instigantes é a literatura. Com ela, pode-se atingir outros públicos, mexer com a cabeça dos leitores, na crença de que esse exemplar – o raro leitor – seja alguém disposto a assimilar novas ideias.

Bem-vindo, portanto, o livro “Antologia da Maldade 2”, dos economistas Gustavo Franco e Fabio Giambiagi, editado pela Zahar. Os dois autores já haviam escrito o livro “1”, em 2015. Mudou o subtítulo da obra. No primeiro, era “um dicionário de citações, associações ilícitas e ligações perigosas”. Agora é “epígrafes para um país estressado”.

E de onde provém o estresse brasileiro? De inúmeras causas. Talvez a principal delas seja o efeito do aquecimento global, resultado da incessante e crescente emissão de gases venenosos causadores do efeito estufa, num Brasil que teria tudo para ser exemplo mundial, mas que preferiu ser “pária ambiental”. Inacreditável que, antes de se valer desse tesouro gratuitamente oferecido pela natureza, nosso país o dilapide e contribua para a gravíssima crise planetária.

Pior ainda, saber que a destruição ecológica é patrocinada por quem é pago pelo povo para cumprir a Constituição, cujo artigo 225 foi considerada a mais bela norma fundante produzida no século 20. O constituinte de 1988, em nome do povo – o único titular da soberania – teve coragem de explicitar um direito transgeracional. As futuras gerações têm legítimo e real direito a um ambiente equilibrado, sadio e essencial à qualidade de vida digna.

A pandemia veio mostrar à humanidade que ela é impotente e frágil. Está vinculada à dilapidação da natureza. No Brasil, não fora o STF a lembrar que Estados e Municípios também são responsáveis pela saúde, o número de vítimas teria sido muito maior do que o mais de milhão de mortos. Pela situação surreal de se considerar a peste uma “gripezinha” sem importância, o boicote à vacinação – que de tão rudimentar e tosco, nem se pode creditar à ignorância, mas a uma premeditação perversa.

Como não estar estressado um país que tem quarenta partidos políticos, fábrica de produção em série de políticos profissionais e fisiológicos, responsáveis por orçamento secreto, algo inominável. Como ser secreta a destinação do dinheiro do povo? Um povo faminto e a suportar intolerável carga tributária, das mais elevadas do planeta, assistindo inerme e passivamente, o aumento dos malditos “Fundões”: eleitoral e partidário.

Trinta e três milhões de brasileiros passam fome. Não é para estressar? Muitos milhões não têm segurança alimentar. Outros tantos, estão desprovidos de moradia, de saúde, de educação de qualidade, de perspectiva de se alcançar o mínimo existencial.

O panorama brasileiro em 2022 não é apenas suficiente para causar estresse. É para provocar angústia, desespero e revolta. Os dois economistas-escritores partiram dos aforismos que atraem muita gente. Frases proferidas por personalidades. Expressões marcantes, fáceis de decorar e propícias a “enfeitar” um discurso ou até conversa de botequim. Só que entre o primeiro e o segundo livro, a maldade – que no primeiro era ironia, sarcasmo, algo bem sutil – tornou-se crua e cruel. Há maldade mesmo espalhada pelo ar. No Brasil, não é o “love is in the air”. Parece mais “devil is in the air”. Ira incontida, violência verbal e física, corrida às armas, como se houvera o lado do “bem” na luta contínua e cruenta com o lado do “mal”. Famílias se decompondo pelas opções da política partidária cada vez mais pobre e mais torpe. Chacina de jovens. Racismo estrutural. Discriminação e preconceito. Justiça achincalhada.

Uma coletânea de maldades no mais estrito sentido do verbete é fácil de se arrolar em nossos dias. Tempos felizes os de Estanislau Ponte Preta, com o seu “Febeapá”, o Festival de Besteiras que assola o país. Antes fossem besteiras. Hoje, o tosco, o rude, o feio, o vulgar, reveste a maldade que parecia estar contida por um certo pudor. Quando os de cima o perdem e escancaram seu primitivismo, os de baixo se animam e mostram sua cara.

Que novos tempos tragam o belo, o bom gosto, a estética em todos os setores, que ela é a ética da alma. Naquela concepção helênica na qual já nos abeberamos no passado: o belo é sinônimo do bem.

E que um dia, algum integrante das gerações do porvir possa escrever uma “Antologia da Bondade Brasileira” em sucessivas releituras e edições.


Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 25 de setembro de 2022




voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.