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Acadêmico: José de Souza Martins Feita uma desagregação dos dados por variáveis adicionais, os pesquisadores verificaram que falta comida em um em cada três lares com crianças até 10 anos.
O levantamento, agora divulgado, feito pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional), sobre a fome no Brasil, associado a outros dados do momento, como os das várias pesquisas sobre tendências de voto do eleitorado, fazem-nos revelações amargas. Somos um país tristemente à beira do abismo. Um país em que, para muitos, a vida do outro não vale nada. Não só para quem governa como também para uma parcela ponderável dos que votam. Esse levantamento aponta que, em 41,3 dos domicílios, os moradores vivem em estado de insegurança alimentar. Em 15,2, 33 milhões de seres humanos vivem em insegurança alimentar severa, de fome. Juntando-se a insegurança alimentar severa com a insegurança alimentar média (15,5), 30,7 da população está numa situação alimentar crítica: não tem o que comer ou não tem o minimamente necessário para comer e sobreviver em condições propriamente humanas. Feita uma desagregação dos dados por variáveis adicionais, os pesquisadores verificaram que falta comida em um em cada três lares com crianças até 10 anos. No Norte e Nordeste, a situação dessa categoria social é muito mais grave. No Norte a insuficiência de alimentos para todos de uma mesma casa alcança 51,9 dos lares. No Amapá, mais de 60. No Nordeste, o risco da fome é de 49 em lares com crianças até 10 anos de idade. No Sul e no Sudeste, os índices parecem melhores. Mas de fato não são. Ali, respectivamente, 43,2 e 38,4 ”dos domicílios com crianças menores têm acesso a alimentos em quantidade e qualidade suficiente para todos os moradores”, assinalam Fernanda Mena e Josué Seixas na Folha de S. Paulo em extensa análise do levantamento. Em São Paulo e Rio de Janeiro, os índices de lares desse tipo que estão em melhor situação de acesso à alimentação é de 37,6 e 33,3. Portanto, nas regiões brasileiras mais prósperas, a situação da imensa maioria das famílias com até 10 crianças é também muito grave. Vivemos a enganosa suposição de que a fome de ontem pode ser saciada com programas de alimentação de hoje, ou de renda adicional de agora. No caso de adultos, a mitigação da fome certamente quebranta em algum grau a sensação de estômago vazio. Mas não é isso que acontece com crianças. A fome sonega da criança alimentos fundamentais para sua formação, não só sua sobrevivência. Isso pode ser visto em famílias em que a dieta é culturalmente errada. Há situações e conjunturas em que a dieta alimentar se torna quantitativa e qualitativamente imprópria e insuficiente. Sou da geração que viveu os primeiros anos de vida na época da Segunda Guerra Mundial. Havia falta de itens alimentares que dependiam de produtos importados, como o trigo. Como tantos outros, somos um país que tem no pão um alimento quase sagrado. O pão estava racionado. Cada família podia comprar apenas um filãozinho de pão. Alguns anos depois da guerra terminada, eu estava começando a trabalhar, com 11 de anos de idade, e já não havia falta de pão. Eu ia até uma padaria distante, onde o pão saía do forno às duas horas da tarde, para, desde a porta, sentir-lhe o aroma. Eu ali ficava cinco minutos aspirando o pão invisível na tentativa de saciar a fome que deixara marcas profundas em minha memória. Lá em casa, o mesmo acontecia com a carne. Já no final da guerra, meu pai morreu, vitimado por imprudência hospitalar, de tétano, numa operação de hérnia. Dois anos depois, minha mãe casou de novo e fomos morar na roça, onde passei o 3º e o 4º ano primários. Eu tinha que caminhar 16 km por dia, entre a ida e a volta da escola. De manhã, uma caneca de café preto com duas colheres de farinha de milho. No almoço, às duas da tarde, arroz, feijão e repolho cru. Carne, só no sábado, dois bifes para quatro pessoas, cortados horizontalmente. Passei por esse regime durante dois anos. Um dia, desmaiei na escola, de fome. Quando voltamos para o subúrbio operário, as limitações da alimentação continuaram, ainda que atenuadas. A dieta mudara pouco. Comecei a trabalhar numa fábrica clandestina, 8 horas por dia, 6 dias por semana. No dia em que recebi meu primeiro salário, cem cruzeiros, 17 do salário mínimo prescrito por lei para o menor de idade, fui ao bar mais próximo e, em uma hora, gastei metade de um mês de salário com doces e picolés. Eu tinha uma fome insaciável de pão, de carne, mas também de doçura. Quando cheguei em casa, levei uma surra: meu salário não era meu, era da família. Só a fome era minha. Sinto cheiro de churrasco até onde não há churrasco algum. Em 1976, senti esse cheiro numa rua histórica em Cambridge, na Inglaterra, onde eu era pesquisador visitante. A fome grudara na minha memória e na minha alma. Publicado em Eu& Fim de Semana, jornal Valor Econômico, Ano 23, nº 1.126, São Paulo, Sexta-feira, 23 de setembro de 2022, p. 4 voltar |
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