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ARMAS OU ALMAS?
Acadêmico: José Renato Nalini
Enquanto se coleciona arma, descuida-se do essencial, aquela entidade intangível que se convencionou chamar de “alma”.

Armas ou almas?

Assustador o crescimento do número de armas no Brasil nos últimos quatro anos. Os chamados CACs – caçadores, atiradores e colecionadores amealham mais de um milhão de instrumentos de fogo. O aumento foi de 187 comparado a 2018. Para se ter melhor ideia: são 1.006.725 armas de fogo hoje, enquanto em 2018 eram 350.683.

É um dado real, obtido mediante a Lei de Acesso à Informação pelo Instituto Sou da Paz e Instituto Igarapé. O Exército já admitiu não ter capacidade de acompanhar tal explosão, desconhecendo os tipos de armamento e seus calibres. Existe, formalmente, um Sigma – Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, mas sua estrutura não estava preparada para essa avalanche.

O governo federal estimula a compra e a posse de armas pela cidadania. Já editou dezenove decretos, dezessete portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei flexibilizadores das regras compatíveis com o fictício “Estatuto do Desarmamento”. Não é só incentivar a aquisição e posse de armas: é também propiciar a obtenção de calibres mais potentes.

Esse “liberou geral”, que acontece também com a questão ambiental, anima os indivíduos que se sentem mais poderosos quando armados. À evidência, inviável qualquer controle do uso que se faz desse material de tamanha letalidade. Seria necessária uma rede imensa de fiscalização, para verificar se a posse de arma coincidiria com o trajeto entre a casa do portador e o local indicado para a prática do tiro como esporte ou para a caça. Na verdade, o beneplácito federal para a disseminação das armas equivale a uma permissão generalizada do porte, a qualquer pessoa que se autodeclare caçadora, colecionadora ou adepta desse discutível “esporte”: atirar.

Aquilo que se esperava tem acontecido. A Polícia Rodoviária Federal já tem flagrado pessoas carregando armas até em estados onde não residem. Também tem sido comum deter indivíduos armados embriagados ou cumulando o porte de arma com porte de entorpecentes.

Mais perigoso ainda, como saber se aquele que se autodeclara caçador ou colecionador, não integra uma facção criminosa? O crime organizado ganhou desenvoltura e atua com inteligência, sofisticando-se. Há cérebros talentosos direcionados para o mal, sem que a sociedade do bem possa reagir a essa poderosa, crescente e eficiente investida.

Não é preciso insistir na tese que é comprovada, fruto de dolorosa experiência vivenciada por milhares de famílias brasileiras. O uso de arma gera um natural empoderamento do humano. Assim como é comum a quem está na direção de um automotor sentir-se onipotente, abusar da velocidade, cometer imprudências, idêntica a situação do indivíduo armado. Tende a fazer uso daquilo que lhe acrescenta força e poder invencível. Episódios trágicos advêm dessa conjugação: facilidade de acesso às armas e a natural vulnerabilidade de caráter de seres humanos que precisam andar armadas para se sentir seguros.

É uma lenda acreditar que a arma de fogo sirva para espantar bandido. O mais frequente é que o chamado “cidadão do bem”, quando armado, seja aquele que, involuntariamente, faz com que seu instrumento de matar vá parar na posse do delinquente.

Os otimistas acreditavam que o século 21 traria à humanidade o compromisso de encontrar fórmulas de convivência pacífica, eis que a experiência de dois conflitos mundiais no século anterior onerou excessivamente a espécie. Acreditava-se num período de “adeus às armas”, “bem-vindas as almas”, desarmadas, fraternas, aptas ao convívio fraterno.

Isso passou pela intenção do constituinte de 1988, que teve a coragem de erigir a fraternidade a categoria jurídica. Ilusão de um sonho que se transformou em pesadelo. Um país polarizado, dividido, como se não houvesse espaço para o florescimento de toda a pluralidade complexa do animal racional. A ira aflorando a qualquer mínima contrariedade, as ofensas verbais, o sarcasmo e a ironia ácida. E a potencialidade do uso das armas para vencer, pela força, aquilo que a presumida e orgulhosa razão não consegue fazer.

Sei que posso parecer ingênuo. Mas arma de fogo, ferramenta de tirar a vida, sequer deveria ser fabricada. Existe ciência e tecnologia suficiente para neutralizar qualquer ato violento, sem que seja necessário matar o agressor. Todavia, como continua a ser primitivo, rude e selvagem o instinto animal que reside na mente do bicho-homem.

Enquanto se coleciona arma, descuida-se do essencial, aquela entidade intangível que se convencionou chamar de “alma”. Será que todos ainda a têm?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 21 09 2022



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