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A FUNDURA DO POÇO
Acadêmico: Gabriel Chalita
Caí no cadafalso da reciprocidade do amor. Não ouso julgar o que ela sente ou o que ela sentiu. Não cabe a mim os esconderijos da alma do outro.

Caí. Quem diria. Justo eu, tão cuidadoso. Caí andando. Se tivesse ficado parado. Mas de que me serviriam os pés, se não para o andar? De que me serviriam os desejos se não para deixar que o caminho me faça caminhante?

Caminhei pelo desconhecido. É assim a paixão. É o inadministrável. É o vento que dobra as montanhas e que chega quando nem se imagina. Montanhas dos meus pensamentos se rarefizeram em pó. Deixei de pensar quando vi. Deixei de fazer contas quando subtraí de mim qualquer dia sem ela.

A imagem da perfeição me fez desconfiar. Só no início. O molecar desde o amanhecer me fez querer cuidar. Tão menina. Tão graciosa correndo por mim com os pés sem proteção. Descalços também nos despreocupamos das machucaduras.

Amei Júlia como quem ama uma concepção de que sempre desacreditei, nascemos um para o outro. Sou homem de desconfianças. Aprendi isso com minha mãe e com professores de vida que me ensinaram a ver várias vezes para finalmente ver.

Enquanto nos amávamos, invariavelmente fechava os olhos e permitia que os nossos corpos dissessem o que sentiam um para o outro. Tão frágil me parecia Júlia. Tão entregue. Tão eternamente minha. Alguns dias, nos silenciávamos olhando a noite chegando. Onde moro há barulhos leves de natureza.

Entendo o amor como uma renúncia de parte de mim e como preenchimento poético de outra parte que em mim faz felicidade. Então, desliguei outras conversas. Aborrecimentos, tranquei longe. Era só o estar com ela que me dizia a vida.

Por que foi que ela se foi? Porque é assim que é. Ninguém manda no que vem depois do hoje. Não a preencho de maldades. Não. Um dia, decidiu outro viver. O que me cabe é olhar os pássaros que rasgam os céus e ler a liberdade. Se sei disso, por que caí nesse poço de fundura discutível? Por que não me levanto e me despeço da servidão voluntária? Voluntária?Decidi nada sobre o apaixonar, decidi nada sobre o partir. Parte de mim diz que passa, que basta um levantar e os caminhos estarão mais uma vez abertos.

Caminhante que sou recolho palavras para sobreviver. Palavras enfeitam cenários. Cenários alimentam os meus olhos que hoje só veem o poço.Se me serve alguma explicação, que seja o poço um tempo de agasalhamento da dor e que, depois, seja um habitante da memória.

Caí no cadafalso da reciprocidade do amor. Não ouso julgar o que ela sente ou o que ela sentiu. Não cabe a mim os esconderijos da alma do outro. Na minha, já habitam mistérios à exaustão. O que me cabe é saber que ela decidiu ir. E que eu permaneço. Mesmo que em um poço menos fundo do que hoje sinto.

Sinto que não paro por aqui. O pensar já me perfuma de esperança o dia que virá. Prosseguirei caminheiro. Caminhadas cicatrizam feridas e ventilam novidades. E Júlia será apenas uma lembrança bonita dos dias de brincar. Brincarei em outros campos onde florescerão atenção, respeito, permanência.




Publicado no site do jornal O Dia, 18 de setembro de 2022.



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