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É POSSÍVEL SER INDEPENDENTE?
Acadêmico: José Renato Nalini
Como é viável existir sem que o Estado nos acorrente com sua burocracia, com os seus tributos, com a sua presença exauriente de nossas capacidades?

É possível ser independente?

É natural o desejo humano de ser livre, o que também poderia ser traduzido como ser independente. Só que a independência do homem não é admitida por nenhum totalitarismo, diz Karl Jaspers. Quando o totalitarismo é de feição religiosa, tende a impor um credo único para todos. Para ele, “a independência parece ter-se perdido silenciosamente na inundação da existência pelo típico, habitual e incriticamente aceite”.

A única maneira de se conseguir independência pessoal, em tempos sombrios de incerteza quanto ao futuro, de ignorância e de obscurantismo, de ameaças ao mínimo de democracia que se garantiu propiciar aos humanos, é filosofar. Filosofar significa lutar em todas as circunstâncias pela independência íntima. Livrar-se das contingências, assumir a condição humana do livre pensar, livre falar, livre agir. Alguém consegue hoje libertar-se de todas as cadeias que oprimem a lucidez? Porque os parvos sequer chegam perto de tais cogitações. Ainda existem filósofos no século 21?

Pessoalmente, não compartilho da designação “filósofo” para todos os que escrevem sobre filosofia. Semanticamente, sim, o filósofo é o “amigo da sabedoria” – filos – amigo – sofia – sabedoria. Nesse sentido, pode-se dizer que todos aqueles que amam o saber são autenticamente filósofos. Todavia, “filósofo” no sentido comum de alguém que criou uma escola, talvez não tenha existido mais depois de Sócrates, Platão e Aristóteles.

É mais do que necessário que existam no Brasil, neste turbulento século 21, mais amigos do saber, não os trogloditas empenhados em se armar e em fomentar discórdias, ódios e inverdades.

O filósofo não é oprimido por esse tsunami de ignorância e obscurantismo que assola o país. Pois “o filósofo é independente, primeiro, porque não tem necessidades, libertou-se do mundo da posse e do império dos instintos, vive asceticamente; segundo, porque não tem medo, reconheceu a falsidade das imagens atemorizantes das religiões; terceiro, porque não participa na vida pública e política e vive retirado em sossego, sem compromisso, como cidadão do mundo. Em qualquer dos casos crê ter encontrado um ponto absolutamente independente, um apoio exterior às coisas que o torna invulnerável e inabalável”.

Existe esse tipo de intelectual em nossos dias? É possível não ter necessidades, se o mundo material nos torna dependentes dos confortos e comodidades conquistadas pela ciência e pela sua serva, a tecnologia? Quem é que hoje não tem medo? Senão por si, por seus filhos e netos, por sua família, pelo futuro de seus descendentes. Não estamos a vivenciar uma fase em que eventos como guerra, fuga, chacina e fome voltaram com força a mostrar nossa impotência e nossa fragilidade?

Como é viável existir sem que o Estado nos acorrente com sua burocracia, com os seus tributos, com a sua presença exauriente de nossas capacidades, desde o berço até o túmulo?

Isso mostra que não existe independência absoluta. Há limites para a independência. Karl Jaspers foi claro quanto a isso: “A independência absoluta é impossível. No pensamento estamos atados à intuição que tem de nos ser dada; na existência estamos dependentes de outrem que em recíproca ajuda nos dá a possibilidade de viver. Enquanto “eu” estou atido a outro “eu”, em comunicação com o qual ambos acedemos autenticamente a nós próprios. Não há uma liberdade isolada. Onde houver liberdade, ela estará em luta com a não-liberdade; a completa superação desta, em consequência da remoção de todos os obstáculos, corresponderia à anulação da própria liberdade”.

A independência só é possível com a interdependência. “Somos independentes apenas quando estamos simultaneamente integrados no mundo. A independência não logra realizar-se pela retirada, pelo afastamento do mundo. Ser independente significa comportarmo-nos no mundo de um modo peculiar: estar e não estar no mundo, ao mesmo tempo estar dentro e fora dele”.

Isso vale para os indivíduos, mas vale também para os Estados. Celebrar duzentos anos de independência do Brasil é reconhecer, humildemente, que precisamos estar coesos com a comunidade das nações, consistindo em leviandade invocar “soberania” apenas para exterminar o futuro, na sanha insana de acabar com a cobertura vegetal em todos os biomas, para dar o exemplo mais emblemático neste fatídico ano de 2022.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 06 de setembro de 2022





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