Compartilhe
Tamanho da fonte


A FORMATURA DA MINHA FILHA
Acadêmico: Gabriel Chalita
O sol ama o que aquece. Sem exigir reciprocidades nem impedir os imperfeitos do seu calor. Nos erros também desabrocham acertos.

Dormi nada a noite que passou. Noites inteiras passaram por mim.

Eu era menina quando conheci o pai de minha filha. Menina com muitos desejos e conhecimento nenhum. Entreguei o que eu era àquele homem. Deixei que se acalmasse em mim a sua pressa. E, assim, nasceu Luiza.

Vivemos juntos por algum tempo. Eu sonhei felicidade no meu pouco entender. A felicidade de meu marido, entretanto, deitava também em outros lugares e nos deixamos. Luiza era tão menina quando o pai a abraçou e abriu as portas. Chorei com ela. Disse nada. Nada saberia dizer. Resolvemos que, em finais de semana alternados, ficariam eles juntos. Era proibido, em mim, proibir amor.

O pai de minha filha foi se entregando ao vício ruim de deixar de ser. E foi se perdendo. Algumas vezes, esquecia quem amava. Então, alguém me dizia do abandono e eu pegava Luiza e explicava que a saudade era tão grande que eu havia pedido ao pai para chegar antes. Jurei nunca dizer o desamor. Não é de mentira que se trata, é de cuidado, de proteção.

Fui vendo o homem que um dia tanto amei se esquecendo de amar. Fiz o que pude para lembrar a ele quem ele era. Sua mãe fez o mesmo. Ele desaprendeu a ouvir e foi se trancando em prisões que impedem a liberdade. O crack foi seu último apagador.

No final de semana, antes da morte, ele pediu que eu deixasse a filha ir com ele. Jurou estar bem. Em dura abstinência. Eu deixei. Nossa filha tinha 8 anos. Ela viveu os últimos dias de vida do pai. Em uma serra. Em uns dias de sol. Voltou bronzeada da presença do amor. E dormiu feliz. O telefone me avisou do fim. Expliquei a ela. Chorou doído. Perguntei se gostaria de ir ao velório. Disse como era. Ela disse que não queria. Eu disse que era preciso pensar para depois não dizer que ficou faltando a despedida. Ela disse que havia entendido e que sabia que não receberia mais o abraço amoroso do pai; então, não havia por que ir.

Fui eu. Fiquei ao lado da mãe do homem que, por primeiro, amei. Amei aquela mãe. Doeu em mim a sua dor. Enterrar um filho é brutalidade que não deveria existir.

Luiza continuou convivendo com a avó. Os laços devem ser mantidos. É desperdício desperdiçar qualquer laço de amor. Na mesinha ao lado da cama, descansa até hoje a nossa foto, eu, o pai, e ela menina, enfeitada de futuros. De futuros que nascem todos os dias.

E, hoje, é sua formatura. Minha filha é mulher feita. É a amiga confidente que ouve as imperfeições da mãe e que oferece maturidades.Tive outros amores. Tive buracos fundos que pareciam decididos a impedir a escalada. Luiza foi luz tantas vezes.

Um dia, fiquei envergonhada e pedi perdão pelas imaturidades. Ela sorriu sabedoria e explicou que o amor compreende os desvarios. Rimos juntas. E juntas percorremos alamedas lindas de felicidade. Outro dia, em um parque, depois de um piquenique, ela olhou para mim e disse: "Mãe, que entardecer!". Nos abraçamos agradecidas pela simplicidade ser tão divina.

Amo minha filha com a convicção de que ela mudou, desde os primeiros instantes do me saber mãe, o meu viver na terra. Sou terra fértil. Sou gestadora de uma vida que vivifica a minha e que agora medicará a humanidade com seu talento e com seus afetos. Comprei um vestido novo. Escrevi uma carta de amor. Preparei surpresas. Despedi qualquer tristeza para viver com ela o calor de mais um dia feliz.

Minha mãe estará comigo. Também perdeu seu amor. Somos três mulheres fortes de tempos distintos, lapidadas em despedidas e dor, companheiras também da alegria. Minha mãe teve que se ocupar do que meu pai não se ocupou. Sofreu sozinha os dias da indelicadeza. Sofri com ela o que entendi. O resto sofri comigo. Luiza é de um outro tempo. Nossas quedas nos alicerçaram para proteger os seus caminhos. E até aqui, modestamente, posso dizer que deu certo.

Ontem, ela me disse sobre o pai. Disse que como médica trabalharia para a saúde da mente das pessoas. Ouvi, apenas. Ela disse o quanto foi importante eu nunca ter exigido a quebra de vínculos nem nunca ter falado dos erros dele. Eu expliquei que não sou mulher do plantio de ódios, nem de jogar holofotes no que não faz bem. Que o amor é o movimento mais bonito da humanidade. É a terra que não pára. É o centro do mundo e o nosso que se harmonizam. O sol ama o que aquece. Sem exigir reciprocidades nem impedir os imperfeitos do seu calor. Nos erros também desabrocham acertos.

Olhei para minha filha e confessei, mais uma vez, que o cultivo do que aprendi com minha mãe, do separar o amor de todo o resto, valeu a pena. Sou uma mulher de fé. E na noite indormida de emoção, disse ao pai da minha filha que, no mistério da eternidade, sabia que ele também estava sorrindo.



Publicado no site do jornal O Dia, 28 de agosto de 2022



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.