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O TOCADOR DE SINOS
Acadêmico: Gabriel Chalita
Os meus amanheceres eram assim. Acordar e acordar a cidade para o sagrado.

Era a hora de eu estar lá. Hora do badalar alegre dos sinos chamando para a missa. 

Os meus amanheceres eram assim. Acordar e acordar a cidade para o sagrado. Mudaram tudo. Veio um homem que arrumou um jeito de desarrumar o que eu fazia. Basta apertar um botão e os sinos obedecem. Eu me dependurava nas cordas para explicar a alegria. E sabia ser outro nos sinos tristes. Nos que anunciavam luto, morte.

A Neurene também perdeu o fazer. Trabalhava no banco. Mandaram tanta gente embora. O João passou a vida cobrando dos motoristas o valor do pedágio. São meus vizinhos na moradia e na dor da desocupação. Sei que as modernidades vieram para ficar. E nós, ficamos como?

O padre, homem de bom coração, disse que eu prosseguisse ajudando na Igreja. Eu aceitei agradecido. Na minha idade, fica difícil outro fazer. 

A Neurene, além da dispensa, foi deixada pelo marido. Arrumou outra o Otávio. E arrumou no próprio celular. Um lugar que se vê e não se vê. Que se marca de encontrar sem saber. E que, quando dá certo, sabe-se que a vida será outra. A filha deles que me explicou e explicou que quase sempre dá errado.

Neurene vive dos pensamentos. Das tristezas do que mudou. Eu explico que é mais fácil errar pelo pensar do que pelo amar. Ela desdiz dizendo que amou tanto que o marido se foi. Que fica conversando com ele nos pensamentos para o dia em que puder dizer tudo. Eu silencio desconversando e falando de Deus. 

Tudo o que os nossos sentidos podem sentir de beleza e de bondade é uma delicadeza que Deus nos deixou para nos lembrar da felicidade. Falo da montanha que mora na nossa cidade e que todo mundo pode ver. Falo de crianças que florescem quando recebem sorrisos. Falo do rio que se ajeita nas margens e que prossegue rumo ao encontro, ao encontro com o mar. Ela acalma por um instante, por um rico instante em que a amizade nos faz ser um no curso do amor.

Os sinos tristes de morte me ensinaram que, na morte, é todo mundo igual. E que, se na morte é assim, assim deveria ser na vida. 

Nunca gostei do marido da Neurene, do Otávio. Sempre achei que ele precisava de uma reforma por dentro para tratar melhor as pessoas. Ele vivia dizendo ser mais jovem do que era, o que já era um viver de mentira. E mais rico também, como se riqueza garantisse que o sino do luto, um dia, deixaria de tocar. Homem que destrata mulher é bolorento por dentro. Talvez tenha sido melhor ele ter ido. 

Eu nunca me casei. De quem eu gostei, de mim, não gostou. Fiz silêncio do meu sentir. Fui até o casamento. Comprei presente, simples, o que meu dinheiro de tocador de sinos me permitia. No dia da felicidade deles, chorei. O tempo é ensinador. E, aos poucos, fui voltando a ver na vida as delicadezas de Deus.

O João disse que eu tenho fé demais. Não sei. Sei que me faz bem acordar e agradecer. Me faz bem aprender que eu não decido tudo. Eu não teria mudado o jeito de tocar o sino. Era mais bonito. Cada dia era diferente. Minha avó me falava dos homens que iluminavam a cidade com as lamparinas. Devia de ser lindo. Ela era uma distribuidora de boas notícias e me explicou que dava para continuar acendendo lamparinas de um outro jeito. Que o mundo precisava de luz, que nenhuma máquina é capaz de oferecer. E dizia isso me iluminando com sua bondade. 

Queria muito ver a Neurene se interessando pelo João. Ela disse que não, que sofreu demais com o Otávio para pensar em outro homem. Eu digo ao João que o que se diz, hoje, pode se dizer diferente amanhã. Minha avó tinha o nome de Maria da Paciência. Foi ela quem me criou. Um dia conto melhor a minha história. Hoje estou preocupado em tocar os sinos que posso para levar alegria às pessoas. Afinal, mudaram tudo, menos a necessidade insubstituível de amar.



Publicado no jornal O Dia, 14 de agosto de 2022.



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