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Acadêmico: Gabriel Chalita Sou hospedeira de profissão. Sei que amar é deixar os estrangeiros prosseguirem falando nas suas línguas. Mas é escolher algum canto comum para cantarmos o que nos enlaça.
Eles chegam de lugares diferentes, dizem diferentes línguas e, diferentemente de mim, vêm e vão. Eu fico. Trabalho há tempos nessa pousada. Sei hospedar. Aprendi com os cursos da vida. Gosto das primeiras conversas. Da curiosidade que o novo desperta. É como sair dos cômodos e preencher de estrangeiros a própria alma. A minha alma tão de lugar nenhum, tão desdobrável, tão sedenta de encontros. É assim o exercício do amor. É o outro, tão perto e tão distante, tão meu e tão de ninguém que vem e que me desperta um bagunçar interno. Cubro a minha nudez com cuidados e, depois, sem grandes autorizações, descubro. E ofereço sorrisos. Explico como funciona a pousada. Onde se deve ficar, o que se pode fazer. Falo do que alimenta e do que é proibido. Abro as janelas para que a vista comova. E entrego o melhor que posso da melhor parte de mim para um primeiro aconchego. Conheço muitas línguas, mas desconheço os não-ditos. Tento observar onde olham os olhos que me olham e, por vezes, acerto. Erro, também. E muito. Mesmo na interpretação dos ditos. Até porque os que dizem dizem, por vezes, o que não sentem. Ou sentem que dizer organiza a hospedagem. Sabem nada de sentimentos. Sabemos nada de sentimentos. Em cada quarto da pousada onde administro chegadas, permanências e partidas, há histórias. Para compreendermos, é preciso saber ler e contar histórias. Leio nos gestos que conheço e nos que desconheço as histórias que carregam os meus visitantes. Ninguém vem do nada. É das outras hospedagens que nos formamos, que nos deformamos, que nos reformamos. Reformei, muitas vezes, os meus cômodos e as minhas disposições de amar. Vi e vivi desperdícios. Os medos desautorizam histórias lindas. Janelas fechadas garantem que não se veja o tempo ruim que esconde o dia. Janelas fechadas desconsideram que os dias mudam e que as mudas de esperança florescem novidades todos os dias. Sei dar minha intimidade aos que desabotoam as inseguranças. Há espaços verdejantes em que se deve caminhar descalço. A terra garante algum alimento. E também o vento, companheiro do tempo, que espalha o que não era espelho do que sou. Quando não fui eu para ser de alguém, errei. Os pés descalços caminham lado a lado. Próximos, mas lado a lado. Mãos se entrelaçam segurando um amor que é bom, que é fruto da intimidade, que é dissolvedor de soberbas. Os pés descalços se livram de sandálias gastas para gastar os dias com a novidade. Como é difícil deixar o que nos deixou. Como é necessário deixar o que nos deixou. Na pousada, fazemos limpar. Não há nada mais incorreto que instalações sujas de ontens. Sabemos retirar tudo o que ficou de algum outro hóspede distraído. Sabemos perfumar o ar para que se respire os futuros que moram em um presente, que é estar vivo. Sou fruto das utopias. Desde que cheguei aqui. Não quero me desacostumar com o sorriso diante de uma nova chegada por ter agasalhado lágrimas de algumas partidas. É o que faço. É o meu ofício. Oferecer o que há de melhor de mim para visitantes que tiveram a coragem de vir. É assim que vejo quem chega. Um desbravador. Quando anoitece na pousada, costumo olhar para o céu e descansar com ele. E adormecer com a lua dentro de mim explicando as fases. Quando amanhece, decido ser sempre nova. Porque preciso crescer. Porque posso ser inteira. Porque reaprendo com o que já minguei. Sou hospedeira de profissão. Sei que amar é deixar os estrangeiros prosseguirem falando nas suas línguas. Mas é escolher algum canto comum para cantarmos o que nos enlaça. Que graça é prosseguir vivendo nessa pousada de tantos cantos de brincar. Sou hospedeira, também, da criança que nunca se foi de mim e que, quando necessário, me desperta para lembrar de quem eu nunca deixei de ser. Publicado no jornal O Dia, 07 de agosto de 2022. voltar |
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