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Acadêmico: José Renato Nalini O Ministro Rogério Schietti, esse extraordinário ocupante de uma Cadeira no STJ, também abomina o surreal estímulo a que a sociedade civil se arme.
Sob a toga, um coração O dinâmico e incansável Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo promoveu o Congresso “Cultura e Cidades no Brasil: 100 anos da Semana de Arte Moderna e seus reflexos na tutela jurídica do meio ambiente artificial”, inteiramente online e com a participação de centenas de interessados. Privilegiou-me com a inclusão de despretensiosa fala, a encerrar uma noite em que o Ministro André Mendonça falou sobre Direito, Arte e Religião, o próprio Fiorillo expôs “O Brasil da Semana de Arte Moderna de 1922 em face do Brasil 200 anos após” e o Ministro Rogério Schietti Machado Cruz proferiu a conferência “Os crimes de rua: 100 anos de novas configurações”. Conheço o Ministro Rogério Schietti há muitos anos. Admirava a sua sensibilidade enquanto integrava o Ministério Público, pioneiro numa visão de processo penal bem diferente da concepção repressiva e carcomida, ainda predominante entre os que continuam a dividir a humanidade entre bons e maus, amigos e inimigos. Admirável é que ele conserve aquilo que considero o mais importante atributo para um magistrado, que é o estrito e puro humanismo. Fenômeno lamentável e não raro, é que o convívio no “Olimpo Judiciário” de Brasília gere a contaminação do integrante das Altas Cortes por aquelas minúsculas e mesquinhas características do pedantismo, da tola pretensão, da vaidade oca e da frieza que acompanha uma assepsia equivocada. A pretexto de se manter a imparcialidade, o jurisdicionado torna-se mero objeto de um orgulhoso agente da soberania estatal. Integrante de carreira jurídica pública é servo do povo, este sim, o único titular da soberania. E o brasileiro nem sempre está bem servido por aqueles que são pagos por cidadãos contribuintes, os que trabalham mais da metade do ano para sustento da tentacular máquina pública. O mesmo povo é que fornece os presidiários para a terceira maior população carcerária do planeta, no país que tem mais faculdades de direito do que a soma de todas as outras existentes no restante do mundo. O Ministro Rogério Schietti fez uma candente e consistente análise do “crime de rua” que, em 1922, era a vadiagem e a capoeiragem. Algo idílico se comparado com a violência que faz o Brasil enterrar mais de cinquenta mil jovens a cada ano. Todos sabem quem são essas vítimas: os pretos, os pobres, os periféricos. Cheguei a escrever uma vez que esse morticínio é preferencialmente chamado pelos “donos da verdade”, aqueles cujo lema é “bandido bom é bandido morto”, de faxina, em vez de chacina. Senti-me confortado ao perceber que esse extraordinário ocupante de uma Cadeira no STJ abomina também o surreal estímulo a que a sociedade civil se arme. Uma nação cuja lei fundamental propõe a edificação de uma pátria justa, fraterna e solidária, dissemina a falácia de que as armas existem para que os “honestos” se defendam dos “perversos”. Submete-se ao lobby da indústria armamentista, carreando para essa fabricação letal os recursos que eliminariam a fome de trinta e três milhões de brasileiros. Além de suprir as carências de uma nação em evidente retrocesso moral e social. O brado desse luminar, autor prestigiado na matéria que domina e exercita no Superior Tribunal de Justiça, é de indignação contra todas as mortes que poderiam ser evitadas, mas sua ênfase está naquelas perpetradas pelo próprio Estado. O Estado é uma construção artificial. Uma sociedade de fins gerais, capaz de acolher e propiciar segurança a todas as demais sociedades de fins particulares e aos indivíduos. Embora o Brasil vede a pena de morte – salvo em caso de guerra externa – ela é aplicada impunemente em todo o país. Com o aplauso dos que se sentem protegidos e consideram o policial o remanescente do profissional que deixou de existir no mundo civilizado: o carrasco. O empenho dos cultores do direito penal máximo, dos que incluem novos tipos criminais em todas as leis, dos que pleiteiam a redução da maioridade penal e a intensificação das penas privativas de liberdade é inócuo. A delinquência se amplia e se sofistica. Ilusão dispendiosa a de que prisão resolve o problema da criminalidade. O cárcere, infelizmente, precisa existir. Mas não é a resposta para comportamentos que provêm de inúmeras causas, das quais um Estado autoritário, repressivo, ensimesmado em preservar regalias, em reservar o monopólio do poder para os profissionais da política, é o móvel maior. A mocidade, a maior clientela dos presídios – pois o crime é fenômeno que ocorre entre os quinze e vinte e quatro anos – não poderia ser entregue a essa indústria de desumanização. Esse estágio treina ressentidos, alvo preferencial das organizações criminosas, que dão ao egresso aquilo que o governo é constitucionalmente obrigado a fazer, mas não entrega: a ressocialização e a reinserção na sociedade lícita. Esse reiterado engano em política pública da maior relevância ainda custará muitas vidas ao Brasil. Todavia, é motivo de alento constatar que sob uma toga, ainda pulsa um coração sensível e lúcido. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão Em 03 08 2022 voltar |
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