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ESCARROS NO PATRIARCA
Acadêmico: José Renato Nalini
A prática da ingratidão deve explicar os insucessos desta República, tão reincidente em humilhar os seus melhores.

Escarros no patriarca

Duzentos anos de Independência do Brasil, muito ufanismo, celebrações de retórica edificante. Pouco interesse por resgatar personagens que tornaram possível a ruptura entre o Brasil colônia e a lusa metrópole. Impõe-se fazer justiça a José Bonifácio de Andrada e Silva, o “Patriarca da Independência”, cuja biografia oferece infinitas tonalidades de enfoques para instigantes reflexões.

Dentre as várias fases da longa existência desse heroico santista, vale mencionar o período em que assumiu a tutoria de Pedro II e suas irmãs. Pedro I era impulsivo, mas inteligente. Sabia que o Brasil não dispunha de muitos homens de caráter com qualidades morais suficientes à educação aprimorada de um Imperador.

José Bonifácio assumiu a missão e, desde logo, começou a sofrer a pestilência da política malsã, aquela perpetrada por partidos que conseguem congregar o que de pior a humanidade produz, em todas as épocas. Em 2 de dezembro de 1833, no Teatro São Pedro, presente o Imperador, gritavam “abaixo o Tutor”, intercalando com vivas ao soberano e à Regência. Dias depois, a turba instigada pelos exaltados clamava a queda do Tutor. Em 14 de dezembro decretou-se sua suspensão, nomeando-se o Marquês de Itanhaém para substituí-lo. Para criar vácuo em torno do exonerado, expediu-se ordem para todas as portarias, impedindo seu ingresso em qualquer recinto oficial.

José Bonifácio reagiu e declarou que não cumpriria a ordem. Não se considerava suspenso, pois a nomeação fora do ex-Imperador Pedro I. No domingo, 15.12.1833, dez Juízes de Paz, à frente de cento e vinte soldados a cavalo e outro tanto de infantaria, foram cumprir a ordem de suspensão do Tutor. Ele afirmou que os receberia a bala.

Então voltaram mais tarde dois brigadeiros e o próprio Marquês de Itanhaém, para compelir José Bonifácio a acatar o decreto de suspensão. O velho Patriarca, às quatro horas da tarde, acedeu à ordem e fez caminho idêntico ao de Pedro I, despejado não para o outro lado do Atlântico, mas para a sua chácara em Paquetá. Diz Alberto Rangel, no livro “A educação do Príncipe”, que ali “o provecto Conselheiro aprisionado ia conhecer o pior dos exílios, o que se consuma na nossa própria pátria”.

No mesmo dia começou o expurgo da equipe de José Bonifácio. Inocentes foram aprisionados e perseguidos. Os desejosos de poder se regozijaram. Aureliano Coutinho escreve a D. Mariana, antiga preceptora da prole imperial: “Parabéns, minha Senhora! Custou, mas demos com o colosso em terra!”. Avalie-se o teor das intrigas desses maus políticos, ardidos de ambição em torno ao meninote imperial.

Critica-se José Bonifácio por não ter propiciado a Pedro II a educação necessária à preparação de um Imperador. Era o homem mais cultivado de seu tempo, respeitado no Brasil e no exterior. Cientista, naturalista, ambientalista, conhecedor das artes e das manhas da política. Diz-se que não compreendeu a importância da missão que o ex-Imperador lhe cometeu.

Diz Alberto Rangel que “extraordinário é, com efeito, que tão notável espírito, curtido e alentado no enciclopedismo e principalmente dedicado a ciências naturais, nas quais se tornou autoridade universal e em ciências sociais e políticas em que foi sem dúvida um valioso elucubrador, não imprimisse a D. Pedro II e às irmãs nova direção educacional, consentânea às vistas profundas da sua própria cultura. Não se resolveu ele a tocar, nem de leve, no que deparou de bolorento e curto em matéria de estudos seguidos pelos meninos imperiais”.

Aquele que era lúcido, coerente, luminoso e pioneiro em temas como a abolição da escravatura, a incorporação dos índios, a proteção da floresta, sabia aconselhar os deputados de São Paulo às Cortes de Lisboa um espírito tão vasto e esclarecido, mostrou-se um burocrata. Resignou-se a lições medíocres, de professores sem experiência, insistindo na religiosidade primitiva, qual a praticada nas Cortes de Lisboa. Só que esse homem sério e probo cuidou das crianças como se fosse um avô. Não recebeu um tostão pelo seu trabalho. Recusou os doze mil cruzados que o Tesouro lhe ofereceu. Septuagenário, trabalhou de graça. Não quis receber dos cofres públicos dinheiro em remuneração a um encargo que entendia haver recebido de um particular, de um seu amigo.

Isso é comprovado documentalmente. O artigo 6º da Lei de 12.8.1831 concedia ao Tutor vencimentos de 4.800 cruzados mensais. As despesas com a educação de Pedro II no triênio 1831-1834 evidenciaram um saldo de 14.000 cruzados, pela dedução dos ordenados não pagos a José Bonifácio. Ainda assim, viu-se processado. Em 14.3.1835, o júri o absolveu, sem que tivesse comparecido perante seus julgadores. Mandou mensagem dizendo: “Os crimes que eu cometi são de outra categoria, em que muito amor próprio gratuito se ofendia; mas perante a lei, nunca foi crime. Não preciso, portanto, de defesa que não seja o negar positivamente o de que sou acusado em um processo irregular, injusto e absurdo”.

Escarros no Patriarca, a quem o Brasil tanto deve. A prática da ingratidão deve explicar os insucessos desta República, tão reincidente em humilhar os seus melhores.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 22 07 2022



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