|
||||
| ||||
Acadêmico: Gabriel Chalita Os que passam não reconhecem os que param nas ruas frias como membros de uma mesma família humana.
O frio chegou desinteressado da minha opinião. Não me lembro de um maio assim, tão exigidor de agasalhos. Acordo dos meus comodismos e decido ajudar alguns irmãos meus que sofrem nas calçadas dos abandonos. Não sou o resolvedor das misérias humanas, mas sou um humano capaz de algum aquecer. Vejo os meus irmãos das calçadas e os reconheço. Um homem apressado passa por mim contrariado por eu estar ali combatendo a despessoalização. Não gosta de que os ajude. Imagina que, se os ajudarem, ficarão por ali, e que a cidade seria mais limpa sem eles. Digo nada e prossigo na conversa. Atenção também aquece. Sento em uma padaria e espero uma amiga, Luciana. Vem ela com os esbaforidos dizeres de um dia bom de trabalho. Uma criança nos olha e nada pede. Eu ofereço um algo que alimenta. Ela sorri aceitando. Luciana percebe o frio e, então, tira sua blusa e entrega à criança. A blusa era grande para um corpo tão pequeno. Mas aquece. Pergunto da família, ela responde que só tem mãe e que a mãe não está bem. Os olhos lacrimejantes atestam os dizeres. Vive ela com uma tia e, antes da pandemia, ia para escola. Ainda não voltou. Quer voltar. Não tem roupa. Não tem incentivo. Tem medo. Também se chama Luciana. Resolvemos resolver algumas pedras que impedem o florescer da menina. Sei que é apenas uma menina entre tantas outras que se perdem nos desperdícios do infamiliar. Os que passam não reconhecem os que param nas ruas frias como membros de uma mesma família humana. Os que passam não acreditam nos que param, como se parar fosse uma decisão. E não é fácil reconhecer. Há medos que nos rondam. Há comodismos que nos convencem de que somos apenas um na multidão. Na conversa com as duas Lucianas, percebi o entardecer iluminador pintando de beleza os céus. A Luciana menina com aquele blusão já falava com alguma segurança. Disse dos remédios que a mãe tomava e de seu nervosismo. Disse da tia, que era uma santa, mas que tinha criança demais para cuidar. Disse de uma boneca que havia ganhado. Disse do que gostava de brincar. Nos olhos daquela criança, o sol se despedindo iluminava mais bonito a vida. Algumas roupas, alguma ajuda financeira e uma conversa com a tia. E o jardim da humanidade recebeu um pouco do tanto que necessita para florir. Humanidades. De onde moro, tenho o privilégio de ver o sol se escondendo nas montanhas. A vista é linda. Os prédios, construções humanas, ficam pequenos perto da grandiosidade de um espetáculo que é sempre o mesmo e que nunca se repete. Somos pó perto da incandescente energia que vê o mundo pequeno em que vivemos. Do mundo pequeno que somos. A pequena Luciana ficou maior pela generosidade da Luciana, grande nos gestos bonitos de entender o amor, mesmo por alguém que se viu pela primeira vez. Que se viu! Descanso o dia pensando. Tenho tanto. Plantaram tanto em mim. Será que retribuo ao mundo na mesma proporção do que recebi? Tenho medo dos medos que me fazem viver de comodismos. Ou das descrenças que me fazem deixar de ver, que me fazem permitir o desaparecimento do outro. Enquanto penso, remexo no bom que plantaram em mim. E me vem a linda imagem do meu pai, um jardineiro de felicidades. Sorrio de histórias lindas que moram em mim daquele homem bom ajudando uma cidade inteira. Meu pai, aluno da vida dura que teve e que transformou em bondades. Os entardeceres de maio são lindos. Principalmente, quando o brilho que brilha nos altos brilha dentro da gente. Publicado no jornal O Dia, 22 de maio de 2022. voltar |
||||
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562. |