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HÁ DIREITO À PREGUIÇA?
Acadêmico: José Renato Nalini
Se tudo é direito fundamental, o que não é direito fundamental?

Há direito à preguiça?

O constituinte de 1988 foi pródigo ao erigir um ambicioso elenco de direitos fundamentais. Até excessivo, para minha modestíssima opinião. Além dos cinco explicitados no caput do artigo 5º, – vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança – ele conseguiu nada menos do que setenta e oito irradiações desses núcleos básicos.

Além disso, abriu uma porta escancarada para a inclusão, no ordenamento fundante brasileiro, de qualquer outro direito fundamental que resulte de tratados firmados pelo Brasil e também tudo aquilo que resultar de uma interpretação extensiva do pacto federativo.

O perigo nessa enunciação pretensiosa é a trivialização dos direitos fundamentais. Se tudo é direito fundamental, o que não é direito fundamental?

A estratégia de se conceber o rol de direitos fundamentais à luz de gerações e de dimensões, abre espaço para inclusão de novidades muito criativas. Fala-se em direito ao cancelamento nas redes sociais – não estaria já incluído no direito à privacidade? Mas essa discussão a respeito da qualidade dos direitos considerados essenciais a que um ser humano consiga explorar suas potencialidades até atingir a plenitude possível não é coisa moderna. Pois em 1880, um dos mais respeitados dirigentes do movimento operário internacional, Paul Lafargue, já escrevia o seu “O Direito à preguiça”, publicado em panfletos no jornal “L’égalité”.

Ele começa com citação de Lessing: “Preguiçosos em tudo, menos no amor e no beber, menos na preguiça”, numa abordagem ao que chama de “um dogma desastroso”. Escreve: “uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações onde impera a civilização capitalista. Esta loucura tem como consequência as misérias individuais e sociais que, há dois séculos, torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo e sua prole”.

Critica a “santificação” do trabalho resultante dos ensinamentos da Igreja, reforçados pelos economistas e moralistas. Para afirmar: “Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda degeneração intelectual, de toda deformação orgânica”. Para Lafargue, os filósofos da antiguidade ensinavam o desprezo ao trabalho, esta degradação do homem livre. Os poetas cantavam a preguiça, verdadeiro presente dos deuses. E até Cristo, nos Evangelhos, teria pregado a preguiça: “Olhai os lírios do campo; eles não trabalham nem tecem. E, no entanto, nem Salomão, em toda sua glória, esteve tão brilhantemente vestido”. Invoca ainda provérbios espanhóis: “Descansar é saúde” ou “Descansar é a salvação”.

O trabalho seria uma estratégia para manter a humanidade sob freios e tacões impedientes de seu desabrochar. Lembra que Napoleão, em 5 de maio de 1807, em Osterode, proclamava: ‘Quanto mais meus povos trabalharem, menos vícios terão. Sou a autoridade e estou disposto a ordenar que aos domingos, após a hora dos ofícios religiosos, as lojas fiquem abertas e os operários trabalhem”.

Para que o horrendo vício da preguiça fosse extirpado, propunha-se prender os pobres nas “casas ideais do trabalho”, que se tornariam “casas do terror onde se teria de trabalhar catorze horas por dia, de modo que, excetuando-se o tempo das refeições, sobrariam doze horas inteiras de trabalho”. Para ele, o século XIX seria “o século do trabalho; na verdade, é o século da dor, da miséria e da corrupção”.

Condenava o trabalho infligido como verdadeiro castigo às mulheres e às crianças, assim como o credo reiterado pelos cultores do trabalho incessante: “trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza social e suas misérias individuais; trabalhem, trabalhem para que, ficando mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista”.

Exaurido por verificar que suas teses não eram acolhidas, desencantado da vida, Lafargue praticou suicídio. Deixou um testamento político, publicado em “Le Socialiste”, em dezembro de 1911, do qual se extrai: “com a mente e o corpo sadios, mato-me antes que a impiedosa velhice, que me tira um a um os prazeres e as alegrias da vida e me despoja de minhas forças físicas e intelectuais, acabe por paralisar minhas energias e quebre minha vontade, fazendo de mim um peso para os outros e para mim mesmo”.

Não chegou a ver a concretização de seu ideal: a fruição do direito à preguiça. Domenico De Masi afirmou que o século XXI seria o do lazer, do ócio gratificante, pois as máquinas nos substituiriam. Não sei para quem! Embora idoso, continuo a trabalhar cada vez mais. Nunca usufruí do direito à preguiça!

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 15 05 2022




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