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FILIGRANISMO PREJUDICIAL
Acadêmico: José Renato Nalini
Foram 115.688 alertas de desmatamento publicados pela plataforma MapBiomas entre 2019 e 2020 e em apenas seis por cento do total da área desflorestada houve alguma reação do Ibama.

Filigranismo prejudicial

Concordo que o Direito Penal deve ser a “ultima ratio”, ou seja, a derradeira alternativa, quando todas as demais falharam. Infringir uma norma penal representa a mais grave incursão no terreno vedado ao ser racional. Por isso é que os agentes incumbidos do sistema criminal devem ser prudentes, cautelosos, serenos e justos.

Ocorre que se deve buscar é o equilíbrio, a justa medida entre dois polos antagônicos. Nada em excesso, ensinavam os gregos e com razão. E às vezes a excessiva cautela é produtora de injustiça.

Penso na inação de organismos como o Ibama, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, que atuou em apenas um por cento dos alertas de desmatamento na fase mais trágica do extermínio da Amazônia.

Foram 115.688 alertas de desmatamento publicados pela plataforma MapBiomas entre 2019 e 2020 e em apenas seis por cento do total da área desflorestada houve alguma reação do Ibama.

Isso significa a inexistência de fiscalização por parte do governo federal e nos remete ao campo de abrangência do delito de prevaricação. Ele está descrito no artigo 319 do vetusto Código Penal da década de quarenta do século passado e seu tipo é: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.

É um crime cuja objetividade jurídica é o regular funcionamento da Administração Pública, sua moralidade, ou a decantada probidade administrativa. Sujeito ativo é o funcionário público, sem exclusão do particular que concorra para a sua prática, desde que saiba da condição especial do autor. E a vítima é o Estado, a sociedade de fins gerais que só existe para abrigar as sociedades de fins particulares e os indivíduos. No caso da prevaricação eventualmente caracterizada por parte da omissão do Ibama, a vítima seria uma legião: os terceiros prejudicados com a inação, até mesmo os nascituros, na previsão intergeracional do artigo 225 da Constituição da República.

Parece configurada a omissão criminosa. Mas já pode surgir um argumento de defesa: o Ibama foi praticamente esfacelado pelo desmanche praticado pela atual gestão federal. Ao menos é o que a mídia espontânea veicula: vagas não são providas, concursos não são realizados, verbas são contingenciadas.

Diante do precedente de exoneração de um responsável pelo Inpe que ousou demonstrar que havia irregularidade no controle e fiscalização a cargo desse órgão, não é difícil dar crédito ao noticiário. Até porque, nenhuma medida em contrário foi tomada. Bastaria abrir concursos, prover as vagas, descontingenciar o orçamento. Enquanto isso, orçamentos secretos, compra de vacinas por preço superfaturado, aquisição de prótese peniana, investimento em Fundos Partidário e Eleitoral prosperaram de forma expressiva.

Se realmente o Ibama não podia atuar – e haveria necessidade de comprovação de que a situação de miserabilidade do órgão foi relatada a quem de direito – então incidiria o princípio “ad impossibilia nemo tenetur”. Não é viável agir diante da impossibilidade. Mas sempre haverá um responsável pelo definhamento do Ibama. Quem é? Teria essa autoridade praticado a prevaricação?

Parece singela a constatação de que não agir quando se é obrigado a atuar é uma falha. Uma falha que, causando prejuízos à comunidade, caracteriza um delito. E aí entra a sofisticação do Direito Penal. Aquilo que ao jejuno parece bem configurado, para a hermenêutica – a interpretação das leis criminais – começa a adquirir contornos de uma sofisticação desastrosa. Começa pela classificação da prevaricação: trata-se de crime próprio, formal, doloso, comissivo ou omissivo próprio, de forma livre, instantâneo, unissubjetivo, unissubsistente ou plurissubsistente, a depender do modo como o crime é perpetrado.

A jurisprudência já se fixou no sentido de que imprescindível a indicação do interesse ou sentimento pessoal que propulsiona o funcionário público a perpetrar a prevaricação. Qual o interesse ou sentimento pessoal desse criminoso? Acabar com a floresta? Menosprezar a ciência? Atender à cupidez dos cupinchas?

Esse “filigranismo jurídico” inviabiliza a punição dos responsáveis por esse crime que pode ser qualificado de hediondo, embora a lei penal o sancione com detenção de três meses a um ano e multa. Quase insignificante, portanto, perante a lei penal. Quando a humanidade perecer e algum ser racional pesquisar a causa, entenderá os inumeráveis motivos pelos quais aquilo que tendia a ser uma civilização avançada acabou melancolicamente. Então fica tudo como está. Estamos acostumados.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 24 04 2022



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