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Acadêmico: José Renato Nalini A mágoa é um dos venenos d’alma que machucam mais quem as conserva, do que aquele que a causou.
Mágoas imprescritíveis O instituto da prescrição foi elaborado na ciência jurídica para prestigiar o decurso do tempo. Pensou-se, principalmente, na seara criminal. O jovem de dezoito anos que pratica um homicídio, não é a mesma pessoa quando chegar aos sessenta. O tempo atua de forma inexorável para mudar não só o aspecto físico, mas também para trazer profundas mutações na mente humana. Esse moço homicida não pode permanecer durante décadas à espera que a Justiça lhe imponha uma sanção. Quando o Estado assumiu o compromisso de funcionar como elemento neutral entre agente e vítima, ele também se obrigou a fazer com que a espada justiceira incida sobre o culpado em período razoável de tempo. O tempo, que a humanidade sabe o que é, embora não consiga explicá-lo, como ensinou Agostinho de Hipona, é um fator curativo. A dor lancinante de alguém que perdeu o amado vai se cicatrizando aos poucos. A experiência comum é a de que o desespero pela falta vai se transformando num sentimento suave, que em português se chama saudade. A prescrição também ocorre no âmbito civil. Emblemática a usucapião, considerada a prescrição aquisitiva do direito real de propriedade. O dono não está inteiramente seguro, ainda que o imóvel esteja registrado em seu nome na circunscrição imobiliária competente. Ele tem de exercer o seu domínio. Se abandonar a propriedade à sua própria sorte, durante razoável tempo, o fenômeno sinaliza ao direito que ele já não tem interesse em conservar o imóvel. E um outro, sem o domínio registrado, que zele pela propriedade como se dela dono fosse, desde que o real proprietário não se oponha e essa posse venha a ser qualificada como pacífica, tranquila, aceita pela comunidade, vem a tornar-se o dono legítimo daquilo que originalmente não era seu. Pois bem. Estranho ao ouvir que num campo muito mais movediço, complexo e às vezes inexplicável, haja mágoas que restem incólumes à prescrição. Ressentimentos que perduram depois de décadas. E tento perscrutar a mente que as nutre com aquele fel angustiante. A sabedoria popular repete que “errar é humano; perdoar é divino”. Desse brocardo pode-se extrair que é plenamente explicável a incapacidade que alguns têm de oferecer perdão a quem os ofendeu. Somente espíritos elevadíssimos, próximos ao Criador ou à energia que rege os destinos do cosmos, são capazes de deletar a cicatriz que restou da ofensa. Essa categoria é rara. Tomás de Aquino falava em “excellentia naturae”, seres tão perfeitos, tão distanciados da normalidade, que poderiam até dispensar o convívio com outros humanos. Vivem o permanente diálogo com a divindade. Prescindem de se relacionar com os demais. Mas não é necessário chegar a tais criaturas tão especiais. Basta um exercício de reflexão para chegar à constatação de que as pessoas são imperfeitas, embora vocacionadas à perfectibilidade. Como penetrar a consciência alheia e nela detectar o que levou alguém a se portar de maneira cruel com outrem? Quais os motivos que o levaram a isso? Será que houve premeditação? A conduta inadequada foi realmente consciente? Não é possível encontrar um mínimo de compreensão do comportamento alheio, algo que atenuasse o rancor e propiciasse a acolhida, em lugar da repulsa? Existe uma explicação para o mal, que seria a ignorância do bem. O ignorante deve ser perdoado. Mas há outras situações. É preciso mergulhar no contexto, na história pessoal dos envolvidos. Há tanto de insondável nos relacionamentos! Diferenças de origem, de família, de fortuna. O amor e o medo nem sempre andam separados. Os amantes que sofreram e tiveram de se separar, guardam cicatrizes profundas. Embora o tempo as atenue, elas estão lá e podem ser revolvidas diante de algo aparentemente insignificante. Por que não procurar entender, estender a mão e o abraço, liberar-se desse peso que pode se tornar insuportável, e que acarreta tristeza para ambos os personagens? Penso que a mágoa é um dos venenos d’alma que machucam mais quem as conserva, do que aquele que a causou. A vida é muito breve e frágil. É um átimo. Mal se chega a percebê-la e já acabou. Jogar fora aquilo que nos entristece é um recado para a viagem que nos está destinada e da qual não poderemos desistir. Os momentos não se repetem. A vida é o teatro puro, sem ensaio, sem repetição. Mágoas devem prescrever. Há coisas mais bonitas a que se apegar e que são aquelas que valem realmente a pena. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão Em 14 04 2022 voltar |
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