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Acadêmico: Gabriel Chalita Viveu plena. O amor permaneceu até os instantes finais. Ou melhor, os instantes finais do que se sabe. O que vem depois é penumbra de pensamento. É incursão no belo do que não termina.
Em um mês de abril, Lygia nasceu. Há tempos. E no abrir do abril, em que ainda estamos, ela partiu. Era domingo. O silêncio do apartamento preenchido por memórias anunciava o mistério. O corpo, sagrado templo de uma mente ávida por histórias, recostado na cama, parecia apenas explicar a paz. A menina que viveu tempos diversos diversificou a capacidade de construir personagens e costurar narrativas. Viveu fiel à palavra e ao seu poderio. Com a palavra, disse ditos revolucionários. Com a palavra, costurou os mais diversos sentimentos. Com a palavra, penetrou na mente dos leitores e permaneceu. Um telefonema e o domingo se vestiu de tristeza. Era Lúcia, a neta. Eu ouvi a conclusão da vida e fui ter com elas. O mesmo apartamento de tantas conversas. Os livros espalhados pelos cantos. Os cantos das fotos. Os papéis com algumas anotações. A conversa era sobre Lygia. Além de Lúcia, Margarida, a outra neta. E, também as moças que lá trabalham, exercendo o belo do cuidar. E o amigo Renato. Viveu plena. O amor permaneceu até os instantes finais. Ou melhor, os instantes finais do que se sabe. O que vem depois é penumbra de pensamento. É incursão no belo do que não termina. As lembranças foram se achegando e nos retirando palavras. Sobre os tempos duros da vida. Lygia enterrou o filho, o único filho. Chorou o inverno eterno da inversão da lógica da vida. Lygia enfrentou os divorciados da compreensão dos direitos da mulher. Foi feminista antes do feminismo. Empunhou a liberdade como regadora das vidas geradoras de vidas, das flores merecedoras de desabrochares. Que flor é Lygia? Delicada e decidida. Forte e adaptável, se necessário. Se não, desbravadora do próprio destino. Romanceou histórias e contou contos que percorrem os subsolos ou as superfícies do existir humano. Decidiu finais doídos para provocar compaixão. Outros, alvissareiros, para não desperdiçar esperanças. Gostava das conversas para preencher de histórias suas personagens. No silêncio do domingo da despedida, percorri numerosas vezes os espaços do convívio. A cadeira onde a escritora escrevia. Os livros tantas vezes lidos. O chão. As portas tantas vezes abertas. As janelas e as metáforas de mundos que nasceram ali. O café nos esquentava o pensamento. Era hora de fechar a porta e descer rumo à vida. No velório, os dizeres eram de gratidão. Vivemos nos tempos de Lygia e, com Lygia, nos alimentamos de sentimentos. Decidiu ela ser cremada no mesmo crematório onde chorou o filho. Decidiu ela que as cinzas fossem distribuídas ao mar. Em um dia azul. Talvez "nem na luz da manhã nem na sombra da noite". Segundo ela, a beleza "está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa incerteza". Certos estamos de uma coisa, Lygia melhorou o mundo, Lygia prosseguirá melhorando o mundo. Na imortalidade das memórias. Nos livros, aguardando o mágico folhear. À noite, fui a um restaurante que tantas vezes fui com ela. Era tão menino quando ela abriu as portas da grande cidade para mim, do grande mundo dos que cultuam os escritos. Irmãos de ofício, nunca nos separamos. E nunca nos separaremos. A partida de Lygia é apenas ilusão dos olhos do corpo. A alma também vê. Enquanto escrevo, vejo Lygia. E penso sorrindo a tristeza do belo. Publicado no jornal O Dia, 10 de abril de 2022. voltar |
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