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Acadêmico: José Renato Nalini Em “Heresia”, Betty Milan revolve temas que são tabus. O suicídio assistido, a eutanásia, a ortotanásia.
Outro lado da vida Um dos raros consensos detectáveis em nossa era é o de que a ciência garantiu longevidade aos humanos, permitindo que sua aventura terrena se prolongue até um pouco mais de um século. Cresce o número de pessoas capazes de celebrar vivas o seu centenário. A conquista de mais tempo neste Planeta é considerada vitória sobre a morte; prevalece em relação a outros aspectos desse fenômeno. É interessante perscrutar um outro lado, o que significa viver tanto. É o que faz Betty Milan, em seu livro “Heresia – tudo menos ser amortal”. O livro é dedicado a Vincent Humbert (1981-2003), o jovem que emocionou a França ao implorar o deixassem morrer, já que vegetava e não vivia. Conseguiu a adesão de sua mãe, Marie Humbert, que soube reconhecer a condição do filho e superou a possessividade materna para atendê-lo. A reflexão da filha que vai enterrar a mãe envereda pelo calvário do que foram os seus anos derradeiros, em que a esqualidez, a decrepitude e – pior do que isso – a ausência, a semivida, afetam a própria concepção de dignidade. A personagem trava uma luta com ela mesma: “vou em frente sem medo de dizer o que sinto. Sei que desejar a morte da mãe é uma heresia. Há meses, eu desejava a partida. Se me perguntassem por que, eu responderia que não suportava mais ver o que restou dela. Sei que o meu caso não é único. Porém, também sei da hipocrisia alheia”. Acompanhar as vicissitudes que chegam com a idade é um processo doloroso. O senso comum argumenta que, se ficar velho não é bom, a alternativa é pior – morrer jovem. Não se tem noção do que ocorre de verdade. A sucessão de perdas, o declínio acelerado: “nada é pior do que deixar de existir para si, como aconteceu com ela e com os outros cujo cérebro se esfarinhou”. Quem está perto sofre mais. Porque tem consciência. O conflito é pensar se não seria melhor para todos, inclusive para a idosa, que ela se fosse. Comparar o que o ser forte, inteligente, vivaz já foi um dia e o que ela é hoje representa um suplício. Tem-se vontade de renegar: “Há muito eu digo que me separei da mãe. Me “separei” desde que ela perdeu a noção do tempo e a duração da minha ausência deixou de ter significado”. Simultaneamente ao “divórcio” entre mãe e filha, sentimentos de ternura: “Possível também que tenha se apagado aos poucos por delicadeza… para que eu acompanhasse o seu fim passo a passo, me acostumasse com a ideia da sua desaparição. Isso tudo é um mistério, desisti de entender. Não interessa perguntar por que a vida foi desta ou daquela maneira… não tem resposta”. A dúvida sobre a internação em um dos “lares de repouso”, eufemismo para asilo de velhos. “Pensei num lar qualificado. Mas, por maior que fosse a qualidade, mamãe viveria só entre desconhecidos”. Os sustos, os ataques, as internações cada vez mais frequentes. A surpresa: “contrariando o veredito dos médicos, mamãe sarou de novo e ainda fez pouco deles” pois “nenhum diagnóstico é mais importante do que o desejo de viver”. A missão dos cuidadores mereceu uma análise que geralmente escapa à literatura. “Não sei que vocação é preciso ter para cuidar de idosos. Mas sei de um cuidador que foi procurar um analista a fim de suportar o trabalho”. O que pensam esses profissionais contratados para acompanhar os passos finais de uma trajetória? Chegam sem conhecer a história da pessoa. Encarregam-se dos cuidados paliativos. Suportam o mau-humor e a incompreensão dos familiares. Pior: sabem que não haverá recuperação, nem convalescença, nem alta médica. “A velhice extrema é uma batalha perdida, para não dizer um massacre”. É um naufrágio! Quem inventou a tolice da “melhor idade”? Em “Heresia”, Betty Milan revolve temas que são tabus. O suicídio assistido, a eutanásia, a ortotanásia. O direito de cada um colocar termo à sua jornada. “Quem ode, em sã consciência, querer o que os cientistas querem? Nos transformar em amortais, seres cuja vida só acaba se houver um acidente, seres que, de tanto vier, já não terão mais nada a ver conosco. O amortal não ode ser confundido com o imortal, com o qual sonhamos desde sempre. O amortal é um ser humano que escapa continuamente à morte graças à evolução da medicina”. Duas frases incluídas no livro dão a pista do material submetido à reflexão de quem tiver coragem de encarar velhice e morte: “Alguém acaso julgou que foi uma sorte nascer? Digo logo que igual sorte é morrer”, de Walt Whitman e “…frequentemente me pergunto com que direito eu poderia impedir alguém de se suicidar”, de Kenzaburo Oe. Heresia, de Betty Milan, é “um livro corajoso, oportuno e surpreendente, pela composição”, diz Roberto Schwarz e, na apresentação de Manuel da Costa Pinto, “essa tensão entre o real e o ficcional se torna ainda mais aguda quando aquilo que é representado toca o nervo exposto de dilemas éticos e emocionais”. O avanço da medicina vai colocar a todos nós essas questões. A não ser que morramos jovens. Chance que, para o bem ou para o mal, já perdi. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão Em 07 04 2021 voltar |
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