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ESCUDOS DA ALMA
Acadêmico: Gabriel Chalita
Amei desesperadamente, o que já demonstra um certo desconhecimento do amar.

Decidi, depois de alguma idade, voltar aos bancos escolares. Não que esteja velho. É que os outros, que ocupam comigo os espaços da aprendizagem, ainda engatinham na fascinante aventura da vida. Aventura onde também vivo eu. Eu que, a duras penas, compreendi o significado das cicatrizes. Eu, tantas vezes, feito sem importância na vida dos outros.

Amei desesperadamente, o que já demonstra um certo desconhecimento do amar. Gastei partes de mim em súplicas de alguma reciprocidade. Cheguei a dizer: "Sei que você não me ama, não faz mal, eu amo por nós dois".

Vi Tereza, a primeira mulher que ofereceu a mim um beijo, beijar um outro. Era cedo demais para desconfiar dos sentimentos.
Vi seu texto de incompreensão comigo. Éramos jovens. Que bobagem decidirmos ter um ao outro. Em mim, já naqueles dias, morava a utopia da eternidade do amor. Envelheceríamos juntos, rindo da vida linda que vivemos. Tereza e eu. 

Depois  veio Cristina. Era como uma ocupação em terreno não preparado. O luto, aprendi depois, consome algum tempo. Fiz Cristina sofrer o que eu sofri, sem intenção. Como ela me quis! Como ela se modificou para modificar o que eu não sentia por ela! Então, entendi melhor Tereza. O outro não é uma parte que nos falta. O outro é o outro. O outro não é o responsável pelo amor que não brotou. O amor é meu. E o tempo da compreensão, também.

Foi com Helena que me casei. E, se com ela não houve os solavancos das paixões juvenis, houve paz. Há paz! Estamos juntos há 33 anos. Nossa filha já tem a sua filha. Nossos sentimentos sobreviveram às janelas abertas que são capazes de deixar entrar todo o tipo de tentação. Formamos um escudo, um escudo em nossa alma.  

Há promessas de novidades que podem nos desassossegar. Tive eu e, certamente, teve ela. Os sentimentos, quem os decide? O único poder que temos é o que fazemos com os sentimentos que nos vêm. Decidimos permanecer e isso foi bom.

Rosa é professora do curso de psicologia que me trouxe novamente à faculdade. Como gosta essa mulher do que faz. Abre as aulas oferecendo sorriso. Inicia o assunto como se iniciasse um ritual sagrado em que o saber será compartilhado, em que o saber poderá ser entranhado e transformar vidas. 

Anoto as lições para viver. Vejo meus jovens colegas absortos na voz de Rosa. O tema de hoje é o amor Eros. O amor das flechadas. O amor dos prazeres e das mendicâncias. Nas concordâncias corporais, eu visito as mentes daqueles alunos. Quantos ali já se identificavam com as incongruências da paixão, com as dores da rejeição. Comparo, não por mal, Rosa a alguns outros professores. A lamentável ausência da paixão na arte de acender novidades nos alunos. O necessário despertar das curiosidades. 

Minha mulher brincou ciúmes de Rosa comigo. Eu sorri explicando que ela ainda ensina aos 89 anos e que, talvez, não tenha eu os atributos necessários para despertar nela alguma outra paixão que não a de ensinar.  

Os escudos da alma que esculpimos juntos, Helena e eu, nos desautorizam as mentiras. O amor faz com que nos preocupemos um com a segurança do outro, com a serena vida de quem confia. E, assim, a felicidade permanece sem muita cerimônia.

Não me imaginem perfeito. Histórias perfeitas não vivem nem no Olimpo, a tal da morada dos deuses, de Eros e de tantos outros explicadores dos inexplicáveis sentimentos humanos. Na nossa casa moram Helena, eu e os nossos aconchegos, que enfrentam, com escudos de respeito, os frios das janelas abertas ou suas mentirosas promessas de calor.



Publicado no jornal O Dia, 27 de março de 2022.



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