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TRABALHO E ARTE
Acadêmico: José de Souza Martins
Neste tempo de celebração do centenário da Semana de Arte Moderna, um aspecto das revisões de interpretação de suas causas e de seus desdobramentos é o da relação entre o modernismo brasileiro e a indústria da época.

Neste tempo de celebração do centenário da Semana de Arte Moderna, um aspecto das revisões de interpretação de suas causas e de seus desdobramentos é o da relação entre o modernismo brasileiro e a indústria da época.
A Semana, porém, ofereceu ao público e à história uma concepção de si mesma que foi a do decantamento das formas artísticas que nela se expressaram. Era um modo de purificar a arte que ganhava visibilidade e desafiava costumes e valores.
E, assim, protegê-la de contaminações que atenuassem ou mesmo contrariassem a mensagem inovadora que continha. Ou, eventualmente, questionassem o ufanismo daquele corajoso e criativo atrevimento de um grupo minoritário de intelectuais, artistas plásticos, escritores, escultores, arquitetos, músicos e compositores. O novo, para ser reconhecido, precisa parecer novo.
Chegamos ao centenário do evento quase de olhos fechados para o protagonismo que em nosso modernismo tiveram artistas que não estavam no rol dos convidados para os seletivos saraus literários da nobreza da terra.
Há quase 30 anos, a Editora da Universidade de São Paulo e a Editora Hucitec publicaram, em coedição, um livro referencial sobre a diversidade social dos modernistas – “Operários da Modernidade”, de Maria Cecília França Lourenço, arquiteta e docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. É um livro sobre a diversidade da obra e dos protagonistas do modernismo brasileiro.
Defini-los como operários indica uma perspectiva para compreender o liame entre modernismo e modernidade. Nomes de destaque, como os do Grupo Santa Helena, vieram da classe operária e do trabalho que poderia ser definido como braçal, caso de Rebolo e Volpi.
Outros vinham dos bairros e do subúrbio operários. Portanto, da cultura fabril, da concepção de trabalho em que o trabalhador ainda era, em boa parte autor do conhecimento do processo de trabalho.
Quando as indústrias começaram a se desenvolver no Brasil, no final do século XIX, os censos e listagens da diferenciação da população juntavam o operariado numa só categoria: “artistas e operários”. “Artista” era o artesão. Dos artesãos, aqui no Brasil, saíram muitos artistas modernos – escultores e pintores.
Um dos aspectos mais interessantes e menos considerados do ato de trabalhar, na sociedade moderna, na indústria em particular, é o da sua dimensão artística, como modo de fazer, de pensar o trabalho e de conciliar trabalho e liberdade.
O surgimento e desenvolvimento da chamada grande indústria, que superou a manufatura ainda fundada no artesanato, criou o trabalho divorciado da criatividade do trabalhador. O trabalhador convertido em apêndice da máquina e da linha de produção.
Nesse processo, a indústria se apropriou do conhecimento profissional que era capital social dos artesãos, o trabalho artesanal fragmentado e reorganizado em etapas de um processo de trabalho não individual, grupal e, por fim, da linha de produção. A racionalização e a modernização do processo de produção separaram o trabalho da pessoa que trabalha. É a fonte de inspiração da obra genial de Charles Chaplin, “Tempos Modernos”.
Grandes industriais tiveram clara consciência dessa fratura e da alienação social dela decorrente. Um dos mais lúcidos foi Adriano Olivetti, do grupo italiano Olivetti. Homem de esquerda, com uma visão sociológica das mudanças sociais e dos problemas sociais que delas resultavam, tinha consciência de que o problema fundamental do capitalismo, estrutural, era a alienação do trabalhador, separado de si mesmo.
Combateu essa alienação, por meio de uma espécie de engenharia social do trabalho, antialienadora. Criou na fábrica uma biblioteca, que podia ser frequentada pelos trabalhadores em qualquer hora. Tinham eles, assim, a possibilidade de interromper o trabalho, sentar-se na biblioteca e ler um livro, uma obra literária, um poema.
Isso implicou em revolucionar o processo produtivo para escapar da lógica perversa do trabalho mecanicista da linha de produção, referência da ideologia do fordismo, que aumenta a produtividade e os lucros e aniquila a humanidade própria da pessoa que trabalha. Em graus variáveis e minoritários essa fórmula tem sido adotada por diferentes empresários em diferentes lugares em alguns momentos do processo de trabalho.
Apesar de todo o desenvolvimento industrial, essa tensão persiste como referência de uma consciência social crítica. A de que a privação na produção capitalista é a privação de humanidade de quem trabalha. Para produzir coisas e lucros a indústria tem que produzir trabalhadores alienados de si mesmos. Integrar com justiça social o trabalhador na produção começa por combater a alienação que o impede de nela produzir-se a si mesmo como pessoa.




Artigo publicado em Eu& Fim de Semana, jornal Valor Econômico, Ano 22, nº 1.106, São Paulo, Sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022, p. 4.




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