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VIVI A PRÉ-HISTÓRIA
Acadêmico: José Renato Nalini
O campo do Paulista era em frente ao cemitério, não havia a av. Jundiaí

Vivi a Pré-história

Diante da surpreendente mutação antropológica a que o mundo se viu submetido nos últimos anos, quem nasceu na primeira metade do século passado tende a sentir-se jurássico. Os millenials não acreditam como se vivia naquela época.

As casas eram diferentes. Não havia computador em cada cômodo. Nem TV, que surgiu em meados dos anos cinquenta. A companhia frequente era o rádio, com os programas de auditório, jogos de futebol, que eram imaginados conforme a descrição do narrador, e novelas. Era uma decepção imaginar aquelas vozes maviosas e depois verificar, nas revistas, como eram as pessoas com as quais vivíamos fantasias.

Os quintais tinham canteiros de hortaliças, temperos e até mandioca. As crianças não reagiam quando, aos sábados, a tarefa doméstica era arrancar as ervas daninhas, revolver a terra, tirar as folhas secas e regar a horta e o jardim. Cultivava-se hortênsia, lírio, margarida, cravos e cravinas, não-me-deixes, dália, crisandália, tudo multicor e apropriado para florescer nas épocas certas.

Não existia delivery. As "despesas" eram feitas nos armazéns. Levava-se uma relação do que se devia adquirir para o mês inteiro. Era o próprio dono do estabelecimento quem atendia, mostrava produtos que haviam acabado de chegar. Experimentava-se o queijo, o presunto, a mortadela. Provava-se uma boa quantidade de azeitonas. Se alguma criança acompanhava o pai - a compra doméstica era função marital - ganhava balas ou pirulitos.

A entrega se fazia em carroça, com os empregados da casa de "secos e molhados", já conhecidos da família e chamados por seu prenome ou apelido.

A diversão eram as visitas. Marcava-se o dia - geralmente à noite - em que os amigos iam às casas conhecidas. Criança de um lado, adulto de outro. Havia uma preparação: à tarde, fazia-se bolo, pudim, assavam-se biscoitos. Servia-se licor feito em casa: de figo, jabuticaba, limão ou laranja.

Quando se casava alguém da família, os preparativos começavam semanas antes. Equipes de parentes e amigos encarregavam-se de fazer tudo o que seria servido na festa, não raro em casa da noiva. Balas de coco, cocadas, cajuzinhos, "beijinhos", "olho-de-sogra", canudinhos feitos de massa que se fritava e depois eram preenchidos de cocada com ovos.

Inúmeros rocamboles de goiabada e doce de leite. Tudo o que faria a "mesa branca", no capricho da decoração com papel crepom, laminado e o que mais servisse para o talento aprendido na escola, na disciplina de "artes manuais". Era um belo exemplo de trabalho cooperativo. As pessoas se ajudavam, não se falava em cobrar. Espontaneidade baseada na amizade, tão sólida quanto o parentesco.

Não era diferente quando alguém morria. A casa toda era submetida a uma drástica mudança. O corpo ficava na sala, sobre a mesa principal, com os quatro castiçais com velas acesas. À porta da residência, pesada cortina preta com a cruz amarela. Os "boletins" eram impressos e espalhados pela cidade. O cortejo ia a pé, com o revezamento dos que faziam questão de carregar o esquife. Havia a "encomendação" do corpo, com o sacerdote amigo falando sobre o extinto. Para quem se lembrar, havia uma figura conhecida por todos, cujo apelido era "Brilhanta". Vestia-se de preto, com um chale sobre os ombros, fizesse frio ou calor. Era a primeira a chegar. Nunca soube ao certo como ela tomava conhecimento da morte. Seria íntima das funerárias? Eram duas as que funcionavam em nossa cidade, pertencentes a duas famílias aparentadas.

O campo do Paulista FC era bem defronte ao cemitério. Não havia a Avenida Jundiaí. Toda aquela região do Anhangabaú era chamada de "o campo". A Vila Rio Branco era a "Barreira".

Os domingos eram reservados à missa e ao almoço em casa dos avós. Professoras eram amadas. Não era necessário recomendar que os alunos se postassem em pé à mera entrada da mestra à sala de aula. Era algo espontâneo. Usava-se apontador, borracha, lancheira. As pastas de couro tinham singular odor de matéria crua. Quando eram abertas no decorrer da aula, sentia-se o perfume do lanche preparado pela mãe, que rescendia também o seu carinho.

Tomava-se a benção dos avós, dos tios, era suficiente um olhar para deixar os adultos à vontade. E muita coisa mais, hoje armazenada na memória que resta. Não parece a pré-história?

Publicado no Jornal de Jundiai
Em 27 02 2022



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