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A JUSTEZA DO VESTIDO
Acadêmico: Gabriel Chalita
Nem sempre o amor pode salvar.  Ou pode? Quem decide se é ou não amor o sentimento que gruda na gente? O tempo? Aguardo nada do tempo.

Estava ela na mesa ao lado. Estava eu aguardando. Reparei no vestido. Tão justo. Tão um com o seu corpo. Ela parecia não ter fome. Por mais de uma vez, disse não querer. Também parecia aguardar. A minha fome,  há muito, já não me fala. Como pouco e observo.

Veio em mim a memória da minha avó e dos seus vestidos largos. A largueza talvez se justificasse pela necessidade de espaço.  A malcriação do meu avô não tinha limites.
Minha avó foi engordando de silêncios. Nem uma resposta aos seus dizeres toscos. Às suas palavras mal escolhidas. Às suas investidas, inclusive, nas amigas que iam lá ocupar espaços dos dias longos de antigamente.

Um dia, ouvi uma conversa em forma de oração. Minha avó tinha um inamovível sentimento de inferioridade. Sentia que a felicidade não era como uma brisa que vem e que refresca o calor de toda a gente. A felicidade era para os fortes. A dor tira tudo do lugar. Ela se acostumou tanto ao sofrer que a proximidade da morte era mais sorrisos que apreensão. 

Foi muito diferente da Regina, minha tia, atropelada por acontecimento triste. Ali, houve choro doído. A prece da minha avó costurou palavras que ainda me aquecem. Se o amor pudesse salvá-la, ela viveria para sempre. Não é justo uma mãe deixar, na sepultura, uma filha. 

Nem sempre o amor pode salvar.  Ou pode? Quem decide se é ou não amor o sentimento que gruda na gente? O tempo? Aguardo nada do tempo. Sei que parece um amargor revelar minhas ausências. Mas é a idade que tenho que me diz que o que não houve, até aqui, não haverá de haver. 

Gastei a vida pensando em uma mulher que gastou a vida pensando em um outro homem. A cada gesto, nas calçadas do bairro onde morávamos, acendia em mim alguma esperança. Por que construir castelos tão lindos em areias tão medrosas de mar? 

Julieta, a mulher das minha alucinações, esteve doente. E eu adoeci com ela. As noites indormidas formavam frases do que eu haveria de dizer quando ela compreendesse o meu cuidar. Quando ela me pedisse para ir. Passei os dias, os meses, a vida aguardando. Será que é uma sina querer amar alguém doente? Será que a minha necessidade de cuidar é inversamente proporcional aos que descuidaram de mim? Minha mãe soube pouco de mim. Foi viver a vida com um outro homem, quando meu pai se foi. Foi minha avó, com seus dizeres mudos, que me fez o que pôde. 

A mulher do vestido justo olha para a minha mesa, ou, talvez, para a mesa que há atrás de mim. Ruborescido, aguardo algum futuro. Será que há um futuro? Um futuro sem o medo dos que agridem ou dos que abandonam ou dos que desistem ou dos que nos tratam com perversidade? Será que há um futuro?

Ela pede um café. Sem nada. Eu peço, também. E peço açúcar. Ela pede perdão pela intromissão e diz que deveria tentar tomar puro. E, pela primeira vez, empresta um sorriso àquele dia. Eu obedeço. E me perco formando frases em mim que poderiam ser ditas e que a convidariam para aguardar comigo o que estamos aguardando.

É difícil desdizer os medos quando os medos emudecem. E a vergonha de ser novamente inculto com a interpretação dos sentimentos. Julieta morreu há algum tempo. E culpa nenhuma teve ela do meu sentir. Certamente, nem soube. No cemitério, chorei a inexistência.

"Está aguardando alguém?", pergunta a mulher do café puro. Olho para trás imaginando alguém mais interessante do que eu como o destinatário. "Venha, venha ficar comigo". Ninguém mais havia. Só as lembranças dos tempos mortos. 

Enquanto me preparo para deixar de aguardar, ela sorri mais uma vez como que lendo meus textos vazios, como que disposta a dissipar minhas dúvidas. Na mesma mesa, estamos agora, nós dois.
E um brinde brota em mim, à justeza do dia.



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