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Acadêmico: José de Souza Martins É impossível pensar a Semana de Arte Moderna sem a fábrica como fonte básica e decisiva de modernização no Brasil e de criação de necessidades expressionais, como as define Antonio Candido, que se traduziriam no modernismo. Não foram poucos os modernistas formados nos cursos profissionais do Liceu de Artes e Ofícios e da Escola Técnica do Brás. Um deles, o operário Luís Sacilotto, nas nasceu e morreu no ABC, nome referencial do concretismo.
Passados cem anos de construção do imaginário mítico da Semana de Arte Moderna, sem que nela se recorra às contradições que a expliquem, um jeito alternativo de chegar a ela é o de visitar o Cemitério da Consolação, em São Paulo. Ali estão sepultados Oswald de Andrade e a Normalista, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Paulo Prado, patrono da Semana. E, crítico injusto do modernismo de Anita Malfatti, Monteiro Lobato. Todos eles sepultados em túmulos nada modernistas. Negações da dor e da poesia da ausência no modernismo em “Sepultamento”, de Brecheret, no túmulo de Dona Olívia Guedes Penteado. Teríamos que ser completamente antimodernos e antimodernistas para imaginar que o moderno no Brasil, tenha começado e se revelado na Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, de 13 a 17 de fevereiro de 1922. Creio que melhor compreensão teríamos daquele grande e ritual evento de nossa história cultural se reconhecêssemos o Brasil como um país em que a história se desenvolve em duas direções opostas, só avança nos resíduos, como a Semana, que ficam dessas oposições. Aqui, o progresso e o atraso se determinam reciprocamente. Povo agarrado ao passado nem por isso está imune às irrupções modernizadoras, muito mais decorrentes de fatores objetivos de mudança do que da recusa consciente do atraso e da ousada disponibilidade para a inovação. Aqui as formas sociais e culturais tornam-se modernas como instrumentos de conteúdos arcaicos. Nossa modernidade expressa esse bifrontismo. Recortar o episódio da Semana e descolá-lo do conjunto de mediações sociais, políticas e econômicas dos anos 1910 e início dos anos 1920, que nela se expressam, já traduzidas em arte moderna, permite mitificar mas não permite explicar nem o evento nem o modernismo que lhe deu sentido. O modernismo foi um lento e contraditório movimento cultural. Vista de hoje, a Semana foi-lhe um momento demarcatório, que o desvenda, situa e explica. O primeiro episódio social propriamente modernista, em São Paulo, foi a construção da vila ferroviária do Alto da Serra, da São Paulo Railway, que seguiu o modelo do Panóptico, de Jeremy Bentham, como revelou o arquiteto Marco Antonio Perrone Santos. Era o modelo de prisão do século XVIII, que invertera a concepção de presídio. Em vez da escuridão da masmorra para confinar os presos, a luz da visibilidade plena da polícia sobre o prisioneiro. No Alto da Serra, a visibilidade de todos os recantos do pátio de trabalho e das moradias situava os trabalhadores na arquitetura do medo e da vigilância sem grandes dispêndios com vigilantes. O próprio operário interiorizava o feitor invisível. A concepção social de visão foi cindida. As casas ali tinham a rua da frente e de trás, o que era para ser visto e o que era para ocultar. O tempo cósmico descontínuo do dia e da noite foi substituído pelo tempo linear e contínuo dos minutos. Os horários de trens introduziram o minuto na vida dos paulistas e brasileiros onde foram implantadas ferrovias. Em 1867, o trem saía de Santos às 11h e chegava à estação do Alto da Serra às 12h58. Era o surgimento da temporalidade própria da vida cotidiana e seu modo de vida. É impossível pensar a Semana de Arte Moderna sem a fábrica como fonte básica e decisiva de modernização no Brasil e de criação de necessidades expressionais, como as define Antonio Candido, que se traduziriam no modernismo. O Convênio de Taubaté, de 1906, reconheceu que a economia do café se tornara uma economia de superprodução e de queda de preços. O centro econômico se deslocava para a indústria que crescia e prosperava nos interstícios da economia cafeeira. Surgia a economia voltada para dentro, que atendia necessidades de consumo não atendidas pela importação de produtos regulados por preços de mercado internacional. A importância da indústria já instalada em São Paulo pode ser aferida pelos relatórios de verdadeira espionagem econômica do Department of Commerce dos EUA, dos anos 1920. A fábrica produzia não só o necessário ao consumo, mas introduzia aqui uma nova lógica econômica, moderna, novas formas, novos costumes, novas profissões. A Escola Politécnica e o Liceu de Artes e Ofícios, em São Paulo, criavam profissionais e fábricas de conhecimento, de uma visão moderna do mundo e de uma nova cultura e nova compreensão do mundo. Não é casual que a fábrica já criasse novas formas e nova estética e que vários artistas do modernismo paulista saíssem do operariado. Na pintura, pensemos no grupo Santa Helena. Penso em Luiz Sacilotto, referência do concretismo, operário da região do ABC, cuja obra reflete formas das rebarbas da linha de produção. Na poesia, penso em Nuto Sant’Anna, que polemizou com os modernistas de 1922 porque acreditava em outra via do modernismo, um modernismo de conciliação com a tradição e a história e não um modernismo de ruptura. Seu livro de poemas, “Aurora”, de 1931, reflete tardiamente a modernidade industrial e urbana de São Paulo. Mas está lá. Conteúdos novos em formas velhas. A Semana foi simbolicamente decisiva e deu sentido modernista ao moderno intersticial já presente na realidade social e no próprio cotidiano. Para se firmar, a Semana teria que quebrar, revelar e superar o cotidiano. E o fez. Sociologicamente falando, muito mais importante e decisivo do que ela é o conjunto de fatores e causas fragmentários que se reuniram aos poucos ao longo da história social brasileira desde o século XVIII. O cenário não é só São Paulo, mas um país inteiro que ainda não era nem tinha cara de Brasil. Se na Europa e em outras regiões a história da cultura e da civilização pode ser apreciada numa perspectiva evolucionista, definida a posteriori, aqui já não tem sido assim. A Semana de 1922 não se explica nessa perspectiva. Além do que a linearidade evolutiva pressuposta em interpretações da Semana é contrariada pelas próprias oscilações nas obras dos modernistas: em Anita Malfatti, em Tarsila do Amaral, em Di Cavalcanti, em Mário de Andrade, em Oswald de Andrade, em Guilherme de Almeida, nas inspirações de Villa Lobos. Em todos eles e em outros mais, o modernismo e a criação artística são experimentos, avanços e recuos estilísticos, temporalidades sociais e artísticas desencontradas, invenção, cópia. A Semana de Arte Moderna foi e é porque propriamente brasileira, indecisa, vacilante, busca de um modo de ver e de dizer que expressa nosso modo de ser não sendo. A Semana expôs a beleza oculta e reprimida de nossas incertezas. Foi modernista porque não foi evolucionista. O modernismo nem se inaugurou nem terminou com a Semana. Mais ou menos lentamente ele continuou recriando-se e ampliando-se como resíduo de mentalidade e como desafio ao modo estabelecido de ver e de interpretar. Continuou renascendo a cada dia na obra de gente criativa e inovadora, o repetitivo da linha de produção das fábricas gestando a insurgência desconstrutiva das formas inesperadas, como outra coisa e sobrecoisa do mesmo e da mesmice. Publicado em Eu& Fim de Semana, jornal Valor Econômico, Ano 22, nº 1.104, São Paulo, Sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022, p. 22-23. voltar |
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