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Acadêmico: José Renato Nalini Então: você vai deixar para quem, aquilo que juntou durante sua vida?
Vai deixar para quem? Este grande e complexo laboratório antropológico chamado Brasil é um desafio instigante. Convivem no mesmo espaço geográfico realidades antagônicas. A mais escandalosa riqueza e a mais dramática miséria. São Paulo é a situação emblemática: o maior número de helicópteros e de jatinhos e a ocupação clandestina de áreas ambientais irremediavelmente comprometidas. Algumas das escolas mais prestigiadas, com mensalidades milionárias e uma evasão crescente da juventude excluída, já chamada “geração nem-nem” – nem estuda, nem trabalha. Eu acrescento: e não está “nem aí”! Ao contrário da realidade norte-americana, onde bilionários destinam suas fortunas para causas humanitárias, aqui é raro isso ocorra. O que se chama de mecenato é o fomento de entidades patrocinadas, criação de institutos que servem aos exclusivos desígnios dos financiadores. Ou seja: os incentivos fiscais beneficiam as próprias empresas, que formam acervos artísticos valiosos e pouco ou nada transformam no ambiente da exclusão, a clamar por atenção dos poderosos. Quando constato o apego exagerado pela matéria, pelo dinheiro e pelo poder, não consigo deixar de indagar: – “Vai deixar para quem a sua fortuna? Ou alimenta a ilusão da imortalidade?” Algumas décadas, não mais, é o que se disponibiliza para cada humano. Alguns nem conseguem vivê-las. Todos seremos colhidos pela “indesejável das gentes”, a democrática morte. Ainda assim, a regra é ignorar esse encontro marcado. E amealhar, acumular, vender a alma para ficar mais rico. Nada de ruim em relação à vontade de empreender, gerar empregos, promover o desenvolvimento da sociedade. O que não se entende é a volúpia da posse pela posse, desvinculada do compromisso de tornar o mundo melhor. E o mundo que nos rodeia clama por comiseração, por compaixão, por piedade. São mais de vinte milhões de semelhantes que passam fome. Mais da metade da população sofre de insegurança alimentar. Quinze milhões de desempregados. Percentual enorme de brasileiros sem saneamento básico, sem atendimento de saúde, sem moradia e sem escola decente. Será que isso é insuficiente para comover os poderosos egoístas? Mirem-se no exemplo de MacKenzie Scott, a bilionária filantropa, ex-mulher de Jeff Bezos, da Amazon. Ela distribui sua fortuna para bancos de alimentos, escolas e programas de saúde infantil. Até agora, contabiliza-se o montante aproximado de nove bilhões de dólares doados. Para que essas doações sejam eficazes, ela dispõe de uma consultoria sem fins lucrativos, a Bridgespan, que existe há mais de vinte anos. É uma instituição que aconselha alguns dos maiores doadores do mundo, como a Fundação Bill & Melinda Gates, a Fundação Ford e a Bloomberg Philanthropies. Sua atuação também inclui relacionamento com centros de pesquisa de ponta, como a Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health e instituições de caridade como a YMCA. O trabalho da Bridgespan consiste em aconselhar doadores ricos, estudando seus interesses e orientando-os a estabelecer uma estratégia de doação. Pesquisa e faz diligências em organizações potencialmente merecedoras das doações. Simultaneamente, prepara grupos sem fins lucrativos a operarem com mais eficiência. As raríssimas doações dos bilionários brasileiros talvez não se submetam a uma estratégia semelhante. Os Estados Unidos, que continuam a ser tão copiados pelos brasileiros, têm uma tradição no chamado filantrocapitalismo. Surgiu na virada do milênio, quando os muito ricos começaram a encarar suas doações com filosofia idêntica à da gestão de seus negócios. A própria MacKenzie Scott já anunciou que pretende continuar a doar sua fortuna, calculada em cerca de sessenta bilhões de dólares, “até esvaziar o cofre”. Uma desculpa esfarrapada de alguns milionários brasileiros é a de que, ao inverso do governo americano, o nosso não estimula a filantropia. Ora, se para fazer caridade o doador necessita de incentivo fiscal, então o que o motiva é mais uma espécie de negócio. Não há filantropia, muito menos caridade. A experiência rotineira possui inúmeros exemplos de fortunas que se dissipam, assim que o responsável por sua formação falece. Entram em disputa os herdeiros, suas mulheres ou maridos, os companheiros. A expectativa da morte de quem amealhou é algo presente na consciência até dos mais amorosos filhos. Por isso é que a doação precisa ser uma estratégia levada a sério. Até para efeito pedagógico. Os descendentes têm de se compenetrar de que o mais valioso e válido é o que se conquista com seu trabalho e seu próprio esforço. O que vem gratuitamente, sem sacrifício, é quase sempre desprovido de valor. Vai-se rapidamente, assim como veio. Então: você vai deixar para quem, aquilo que juntou durante sua vida? Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão Em 23 01 2022 voltar |
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