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PARA QUE LADO OLHAR?
Acadêmico: José Renato Nalini
O Brasil não acordou para a realidade contemporânea, continua a produzir uma escola que apenas adestra os alunos

Para que lado olhar?

Poucos filmes renderam tantos comentários recentes como o “Não olhe para cima” da Netflix. Impossível deixar de ler artigos instigantes assinados por jornalistas e pensadores que frequentam a mídia espontânea.

O que justificaria tanto alarde?

A evidente analogia com a situação brasileira vivenciada nestes tempos por uma lucidez aturdida, mas ignorada pela massa não pensante.

Cientistas detectaram a aproximação de um corpo celeste de grande dimensão, que colidirá com a Terra e acabará com a festa humana e, também, com toda espécie de vida neste planeta.

Conseguem chegar à Presidente dos Estados Unidos, interpretada pela estupenda Meryl Streep. Ela está mais preocupada com a reeleição. Parece responder: – “E daí?”. Não se impressiona com a notícia. Afirma estar cansada de avisos catastróficos e prefere aguardar o pleito, para depois pensar no que fazer.

Inconformados, os cientistas conseguem participar de um talk-show que conta com número expressivo de telespectadores. Só que a mídia espontânea, que depende da concessão estatal e que é propriedade de políticos que dela se valem para manter a sua propaganda permanente, não quer notícias ruins. O intuito é fazer o “jogo Polyana”, para que a população anestesiada continue a pensar que este é o melhor dos mundos.

Tudo muito próximo ao Brasil de hoje. O mundo civilizado assiste, entre aterrorizado e atônito, à destruição da Amazônia. Aqui, a versão oficial é a de que a última grande floresta tropical do planeta está “intacta, igualzinha a como era em 1500”.

Enquanto o extermínio do futuro avança aceleradamente, mente-se quanto às cifras do desmatamento e dos incêndios. Pune-se funcionário exemplar, que serve à Nação e não ao provisório desgovernante.

Assim também com relação à ciência. Mortes que continuam a enlutar famílias, aproximando-se das setecentas mil, poderiam ter sido ao menos em parte evitadas, houvera respeito aos cientistas de verdade. Vacina, algo tão trivial e que produziu um breque na mortalidade infantil há décadas, é hostilizada e gera versões esdrúxulas, estapafúrdias e surreais.

O único interesse do governo é manter-se no poder. A qualquer custo. Vale tudo nesse jogo cruel. Qualquer semelhança entre a Presidente ianque e outros chefes de Executivo que se subordinam a mentores exóticos, cultores de teorias fantasiosas e criadores de lendas como a da conspiração, do terraplanismo e outras insanidades, é mera coincidência.

O filme impressiona aqueles que enxergam a realidade sombria e que não se conformam com a inércia da sociedade. Há uma explicação racional para essa abulia. Nunca houve, no Brasil deste século XXI, uma reestruturação do sistema educacional. Ele continua medieval, na tosca e irracional concepção de que o professor detém todo o conhecimento e que o educando é uma tábula rasa. Pronta a receber a informação transmitida pelo mestre.

O Brasil não acordou para a realidade contemporânea, continua a produzir uma escola que apenas adestra os alunos, fazendo-os decorar dados que podem ser obtidos instantaneamente nas redes sociais, não só mais atualizados, mas também coloridos, musicais e mais sedutores do que a tradicional aula expositiva.

Ao deixar de observar que infância e juventude precisam ter estimuladas suas competências socioemocionais, o Brasil produz uma sociedade amorfa, inteiramente dependente do “Estado-babá”, aguardando que a solução para todos os seus problemas tenha uma fonte exclusiva: o governo.

Sem capacidade crítica, desprovida do dom de pensar, a sociedade abúlica e inerte não consegue distinguir o que é verdade e o que é versão imposta pelas redes sociais e por uma doutrinação que polariza ideologicamente todos os ambientes.

A metáfora do corpo celeste que se aproxima – seja ele um meteoro, um cometa, um planeta, seja o que for – é um recado atualíssimo, mas que poucos assimilam. Contra essa catástrofe chamada reeleição – a matriz da pestilência – há uma ferramenta poderosa. A ideia é de João Gabriel de Lima: a ira ou o inconformismo, a sadia indignação, devem gerar mobilização e voto.

O filme “Não olhe para cima” não é uma comédia. É uma caricatura de Estados que escondem a crua realidade sob um manto diáfano da fantasia fabricada em favor dos que se apoderaram do poder e dele não querem se afastar. Para que lado olhar em 2022? O que nos aguarda neste ano emblemático, mas que pode ser fatídico?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 22 01 2022



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