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O ESTADO MEDIEVAL SOBREVIVE
Acadêmico: José Renato Nalini
Quem consegue explicar a lógica dessa espécie tão complexa chamada ser humano?

O Estado medieval sobrevive

Durante muito tempo minha disciplina no bacharelado era Teoria Geral do Estado. Servi-me do fabuloso livro texto “Elementos de Teoria Geral do Estado”, do Professor Dalmo de Abreu Dallari. Generoso e acessível, todos os anos aquiescia em fazer uma palestra para meus alunos do primeiro ano. Praticamente decorei sua obra, enquanto intensificava minha admiração e meu afeto pelo Mestre.

Um dos pontos que mais me encantava era a teoria do direito divino do monarca. Para se sobrepor à crescente autoridade dos senhores feudais, a monarquia foi buscar, com Bossuet, uma interpretação literal do “omnia potestas a Deo”: toda autoridade provém de Deus. A coroação passou a ser uma espécie de oitavo sacramento. E cresceu o poder temporal do Papa.

Dalmo Dallari relata dois episódios ilustrativos: no século XI, Henrique IV, Imperador da Alemanha, passou a nomear bispos, sem a autoridade vaticana. O Papa Gregório VII declarou nulas as nomeações. O Imperador não aceitou e convocou uma reunião de todos os bispos alemães, com o propósito de depor o Pontífice. Este, ao saber da convocação, excomungou Henrique IV e ordenou que nenhum Estado cristão o reconhecesse como Imperador. Todos os exercentes de poder obedeceram ao Papa. Acuado, Henrique IV fez em 27.1.1077, a peregrinação a Canossa, nos Alpes Italianos, para pedir perdão ao Papa. Vestiu-se com andrajos, descalço, esperou ajoelhado na neve que o Papa o recebesse e o perdoasse. Essa era a força do Papado, em virtude da “teoria do direito divino do monarca” no século XI.

Já no século XIV, quando reinava em França Filipe o Belo, este desentendeu-se com o Papa Bonifácio VIII. O Imperador era acusado de impor injusta e exagerada carga tributária sobre os bens da Igreja. Também proibiu que dinheiro francês deixasse a França com destino ao Vaticano. Foi ameaçado de excomunhão. Para culminar, em 1301, um bispo francês, acusado de conspirar a favor da Inglaterra, foi preso pelo Imperador. O Papa Bonifácio exigiu que o bispo fosse extraditado para julgamento na Santa Sé. Filipe reagiu de forma violenta e acusou o Papa de interferência indevida em questões temporais. Convocou um Concílio para depor o Papa.

Houve agressões verbais de ambos os lados. Bonifácio VIII chegou a ser acusado de ser dissoluto e de haver tramado a renúncia do antecessor, Celestino V. Em setembro de 1303, quando o Papa estava em férias no Castelo de Anagri, foi preso pelos soldados de Filipe o Belo e os bens dessa residência papal foram distribuídos aos pobres das imediações.

Foi uma tremenda humilhação e Filipe concordou em libertar o Papa três dias depois, dizendo que acatava sua autoridade espiritual, mas não a incursão em assuntos de governo. Abatido, o Papa retornou a Roma e morreu no mês seguinte.

Nada obstante, a doutrina do “direito divino do monarca” sobreviveu. Na Segunda Grande Guerra, os japoneses se recusavam a aceitar a derrota do Japão, já que seu Imperador era ornado de autoridade divina. Hailé Selassié, Imperador da Etiópia, era também descendente de Deus.

Não são os únicos exemplos. Alguns detentores de poder, quando não têm a oferecer projetos racionais e não entendem de administração pública, nem de relações humanas, apelam para a condição de “enviados especiais da divindade”.

Apelando para temas emocionais, colocam-se como únicos detentores da verdade eterna, intitulam-se os protetores dos valores religiosos, a barreira definitiva contra o império do mal e do demônio.

Valem-se da ignorância da maior parte da população sobre a qual exercem o poder. Carentes de lideranças autênticas, os humanos se entregam à volúpia de quem precisa de um poder absoluto, que não encontre oposição e seja incontrastável, como se costumava conceituar a soberania estatal, antes da disruptiva mutação geopolítica do planeta.

O mais incrível é constatar que pessoas pretensamente eruditas, pois escolarizadas e intelectualizadas, também aceitem esse discurso e se tornem fidelíssimas pontas de lança na defesa do “ungido de Deus”.

Ressalve-se o interesse imediato em alguma benesse patrocinada pelo transitório exercente do mando – sempre no horizonte a tentativa de fazer com que esse transitório se converta em permanente e até perpétuo – mas é inexplicável a fidelidade após a reiteração de insanidades, fartamente divulgadas pela mídia internacional.

Usar das Sagradas Escrituras para governar de forma nem tão sagrada, subverter os textos mediante uma hermenêutica oportunística e interesseira, é uma estratégia que ainda encontra espaço em todos os nichos. Quem consegue explicar a lógica dessa espécie tão complexa chamada ser humano?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 19 01 2022



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