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BRASILEIROS E PORTUGUESES
Acadêmico: José de Souza Martins
Recente artigo de Giuliana Miranda e Mayara Paixão, na Folha de S. Paulo, trata das repercussões, no meio acadêmico, em Portugal e no Brasil, de um livro do jornalista português Carlos Fino sobre as raízes do estranhamento entre os dois países.

Recente artigo de Giuliana Miranda e Mayara Paixão, na Folha de S. Paulo, trata das repercussões, no meio acadêmico, em Portugal e no Brasil, de um livro do jornalista português Carlos Fino sobre as raízes do estranhamento entre os dois países. Diferentes pesquisadores pontuam aspectos do tema, o que mostra a dificuldade no lidar com simplificações estereotipadas a respeito da extensa diversidade de concepções, lá e cá, dos nacionais de um país em relação aos do outro.

Apelidos decorrentes da origem diversa da brasileira ou decorrente da cor são comuns aqui para designar o diferente. Não é raro que o loiro seja chamado de “Alemão”, mesmo que não tenha essa origem. Português, “Portuga”. “Japonês”, mesmo o oriental descendente de coreano ou de chinês. “Negão” para o negro.

É coisa antiga, uma forma tosca de acolhimento numa sociedade à margem do que é próprio do mundo criado pela Revolução Francesa: juridicamente iguais, mas imaginariamente desiguais. Esses tratamentos só podem ser compreendidos pelo tom da voz e pelos gestos que os acompanham. Um código linguístico subentendido.

São eles complementos da fala, uma fala incompleta, uma herança da escravidão. O cativo não era dono da palavra. Sua língua era uma língua subalterna, apenas esboçada, sujeito e predicado, o complemento a cargo de quem ouvia e não a cargo de quem falava. O destinatário da fala ´que é o dono dela, que subentende o que foi dito pelo outro no marco de uma relação de sujeição. Coisas da persistência da cultura escravista entre nós.

O tratamento depreciativo subalterniza o diferente para situá-lo num imaginário de desigualdades que esconde a possibilidade da identidade na diferença. Um fenômeno antropologicamente interessante.

Estamos num período da história do conhecimento de senso comum, tanto lá quanto cá, e não só nesses dois países, dominado por um reducionismo simplificador que nivela por baixo a sabedoria popular sobre o outro. Em vez de crescer em nossa compreensão da diversidade social da condição humana, estamos encolhendo, diluídos em categorias genéricas que obscurecem e negam o que poderia ser uma das grandes conquistas nesse terreno: a da diferença e do direito à diferença.

Uma falsa concepção de igualdade, porque redutiva, vem robustecendo uma cultura da ignorância que pode resultar em grandes estragos nas relações sociais.

É inútil fazer um catálogo das bobeiras disseminadas em nome de valores negativos como os que alimentam um novo modo de desconhecer o que efetivamente são os naturais de ambos os países. O que não nos levará a lugar nenhum, sobretudo a nós mesmos.

Aqui no Brasil, país continental, culturalmente diversificado e até historicamente desigual, não há sequer uma memória comum que permita aos mais ousados falar com referência ao “brasileiro”, que é uma ficção. Nem a língua portuguesa se sustenta como tal nos diferentes lugares do país. Em São Paulo fala-se o pior português do Brasil, com mistura de sotaques e de palavras que o tornam uma língua feia, sem o rigor e a beleza do português falado no Maranhão. Ali, mesmo no sertão recuado, o maranhense comum fala, praticamente, o mesmo português que o Padre Antonio Vieira escrevia em seus sermões eruditos, eloquentes e belos. A fala dos maranhenses autênticos de hoje é vestígio de uma obra de arte.

A propósito do Padre Vieira, o antropólogo português João Leal menciona incidente relativo ao monumento a ele dedicado, inaugurado em 2017, numa praça pública de Lisboa. Um movimento negro quis “linchar” a estátua. Vieira destacou-se na defesa da liberdade dos índios contra sua escravização por bandeirantes. Não só os de origem portuguesa mas também espanhola, no geral mamelucos, mestiços de branco e índia, que falavam língua geral e não raro desconheciam a língua portuguesa.

É uma simplificação tomar as anedotas sobre portugueses, no Brasil, como manifestação de lusofobia. Em primeiro lugar porque não são eles os únicos destinatários de gozação e de humor depreciativo por motivo de origem. Essa é uma característica da modernidade e existe em diferentes países: na França em relação aos belgas; na Inglaterra, em relação aos escoceses; na Escócia em relação aos ingleses. Na Itália, os do norte em relação aos do sul.

Aqui em São Paulo, na Mooca, mais de um século depois da imigração, os napolitanos em relação aos calabreses.
Nos grandes e antigos cemitérios em que foram sepultados italianos, sobrenomes indicam que o imigrante trouxe da pátria de origem, o estigma de um sobrenome depreciativo porque pessoas originárias das classes subalternas.
“Quatocchio” (sic), quatro-olho, no Cemitério do Araçá; “Sposito”, abandonado, quando do nascimento, na roda dos expostos, em vários cemitérios; “Falleto”, falo pequeno, por aí.



Publicado em Eu& Fim de Semana, jornal Valor Econômico, Ano 22, nº 1.100, São Paulo, 14 de janeiro de 2022, p. 4.



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