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Acadêmico: Gabriel Chalita Não se desperdiça um amor. A cama é fácil de ser ocupada; a alma, não.
Ainda antes do amanhecer, olho para o lado e paro o mundo. Embaixo dos lençóis, Neusa esconde uma parte de mim. Eu acaricio com cuidado. Seria desnecessário despertar a mulher que eu amo de um sonho bom. Os que ela vive, acordada, me faço valente para satisfazer. Fiz, há não muito, 70 anos. Ela é mais jovem. É linda aos 50. Achei que havia estacionado, em definitivo, as andanças da paixão. O tempo é um teimoso corredor ensurdecido a qualquer apelo. O tempo do quarto em que acaricio Neusa é nosso. Ontem, a surpreendi me ajoelhando a seus pés e oferecendo um anel com a cor dos meus sentimentos por ela. Eu sussurrei em tom a ser escutado, eu olhei com olhos de verdade, eu sorri o sorriso adolescente que ainda mora em mim e, então, novamente a convidei para viver comigo o amor. Ela riu meneando a cabeça e desacreditando da minha peraltice. Pediu que eu me levantasse. Eu resisti. Ela se jogou, então, em mim. E me beijou o beijo que me alimenta os dias, desde o dia em que a conheci. Nos deitamos no chão e nos esquecemos ali. E fizemos amor como descobridores em ilhas que se revelam nos oceanos. Não se desperdiça um amor. A cama é fácil de ser ocupada; a alma, não. Neusa ocupa minha alma com sua alegria. É cuidadora e bagunçadora na mesma intensidade. Gosta de costurar o tempo com o que me faz bem. E eu me perco em aceitar a costura e em vestir a sua roupagem de amor. As fotografias dos instantes vão emoldurando cenas que quero aproveitar sem medo.O amanhã é distante demais para desocupar o hoje de alegrias. Quanto tempo se vive? Quanto tempo tenho para sentir o que sinto? Sei nada do que não controlo. Sei do colo que acaricio, agora, enquanto minhas mãos provocam um acordar leve. Ela não se importa desse despertar. Espreguiça com uma beleza que me abre o apetite de viver. Gosto do seu ciúme, sem exagero. Gosto do seu cuidado comigo como se todas as mulheres do mundo me quisessem. O amor nos empresta beleza e importância. O amor nos retira do comum e nos entrega sentimentos extraordinários, mesmo no comum de todos os dias. O amor nos leva ao trabalho com sensações diferentes. Nos chama para casa com pressa, com vontade de voltar. Quando me canso em intermináveis reuniões, o pensamento nela me alivia. Quem imaginava que, a essa altura, eu ainda sentisse frio na barriga? Ela come pouco e me alimenta muito. Retira do seu prato pedaços do que eu gosto e me oferece. Cena banal. Cena única. Ela ri, enquanto acorda, fingindo não saber que o que eu sei é que quero estar com ela. Novamente. Por isso, me ajoelhei. Por isso, entreguei um novo anel. Um anel que sem o que sinto seria apenas um anel. Ela me aperta junto ao seu corpo e eu fecho as cortinas para qualquer outro pensamento. Uma música toca em mim o que somos. Apenas uma mulher e um homem. Entre bilhões que ocupam o mesmo tempo que nós ocupamos no espaço da existência. Não. O mundo para em respeito a cada encontro de amor. Por isso, nos desfazemos e refazemos nosso jeito de estar. Me dizem bonito quando me veem. Foi ela que emoldurou esse novo eu que hoje sou. Aos que desacreditam, lamento o desperdício. Publicado no site O Dia, 09 de janeiro de 2022. voltar |
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