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Acadêmico: José Renato Nalini Quem procura quebrar tabus enfrenta o opróbio e a ira.
Do linchamento à glória Incursionar por veredas novas é arriscado. Quem procura quebrar tabus enfrenta o opróbio e a ira. A maior parte das pessoas não quer saber de quebrar paradigmas. Acostumou-se à cômoda postura de assimilar as fórmulas consagradas e hostiliza qualquer enfoque distinto. O pioneirismo, a criatividade e a intenção de mostrar o outro lado requerem boa dose de coragem. Foi assim, por exemplo, com Simone de Beauvoir (1908-1986). A companheira de Jean-Paul Sartre (1905-1980) é hoje considerada uma escritora que rompeu as amarras que conservavam a mulher num patamar de inferioridade no qual permanecera por séculos. Quiçá por milênios. Publicou o livro “O segundo sexo” em 1949, durante um período em que a França estava envolvida numa firme campanha de natalidade. Era a intenção de repor as mortes da Segunda Guerra Mundial. Sua obra não poderia causar senão escândalo. As mulheres francesas só haviam conquistado o direito ao voto em 1944. Cinco anos depois, o feminismo passava por um declínio. O livro impactou o ambiente. Logo na primeira semana, vendeu vinte e dois mil exemplares. Mas despertou obsessiva campanha de ódio. Decretou-se a obscenidade da obra e muitas livrarias se recusaram a vendê-lo. Foi proibido em alguns países, inclusive na URSS, nas democracias populares e em Portugal. O Vaticano o lançou ao Index Prohibitorum: nenhum católico poderia lê-lo. “Le Figaro”, jornal prestigiado, diz que ele atingiu “os limites do abjeto. Simone começa a receber cartas raivosas e até ameaças. São mensagens vingativas, mordazes e até mesmo lascivas. Ela narra o que sentiu ao receber a saraivada de ataques: “Que festival de obscenidade, sob o pretexto de castigar minha falta de pudor! O bom velho espírito gaulês fluiu em borbotões. Recebi, assinadas ou anônimas, epigramas, epístolas, sátiras, admoestações e exortações dirigidas, por exemplo, por “membros muito ativos do primeiro sexo”. Insatisfeita, glacial, priápica, ninfomaníaca, lésbica, provocadora de uma centena de abortos, fui tratada de tudo e, até mesmo, de mãe clandestina. Chegaram a oferecer a cura para minha frigidez, a satisfação para meu apetite de papa-fígado, prometiam-me revelações, em termos obscenos, mas em nome do verdadeiro, do belo, do bem, da saúde, e, até mesmo, da poesia, deteriorados indignamente por mim”. Posteriormente, em suas memórias, ela se confessa mais do que surpreendida com a violência das reações. E tudo aumentou quando publicou o segundo volume, sob o título de “Liberdade de espírito”. Colecionou desdém coletivo, pois era uma “coitada”, neurótica, reprimida, frustrada desvalida, virago, mal-humorada, abarrotada de complexos de inferioridade em relação aos homens”. Interessante que o teor dos escritos de Beauvoir não irritou apenas a direita conservadora e retrógrada. Também causou o furor da esquerda. O Partido Comunista Francês também estava envolvido na campanha de natalidade, pois queria aumentar as fileiras da classe operária. Considerou “O Segundo Sexo” um subproduto da degenerescência burguesa, resultado de importação oriundo de uma América decadente que pretende arrastar o operariado oprimido para essas tendências exóticas. O diretor de “La Nouvelle Critique” empunha sua lança contra “escritores de meia-tigela da reação, existencialistas e outros que enaltecem o que há de mais sórdido no ser humano: os instintos bestiais, a depravação sexual e a covardia”. Diante dessa aparente unanimidade na reprovação, surge Colette Audry, que se indignava com o tratamento recebido na Universidade, à qual adentrara por concurso e obtivera a titularidade em Letras. O livro de Simone era uma resposta à sua situação. Então ela o adota como se fora a concretização de um projeto pessoal e torna-se propagandista e porta-voz dele. Narra que “de diferentes quadrantes, solicitaram-me palestras sobre esse livro. Palestras bem diversas. Círculos de discussão na província. Reuniões organizadas por sindicatos. Havia sempre muita gente e um interesse apaixonado. Em geral, homens em maior número do que mulheres, e as intervenções masculinas mais numerosas do que as femininas. E uma série de dificuldades para chegar a um entendimento”. Com seu trabalho, uma geração inteira de mulheres se interessou pela discussão feminina. Os frutos foram sendo colhidos nos anos sessenta. Menos do que defender uma identidade feminina, Simone procurou atacar as bases do poder patriarcal em favor da emancipação das mulheres. Em 1999, o “Segundo Sexo” dá testemunho do efeito prodigioso que produziu: cinco dias de trabalho, cento e trinta palestras em dez sessões, dezenove ateliês, mil participantes – homens e mulheres – em jornada final no grande anfiteatro da Sorbonne. Patrocinado pela Unesco, reuniu especialistas de vinte e dois países. O legado de Simone de Beauvoir, já no alvorecer do século 21, continuava bem vivo e a gerar reflexão. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão Em 22 12 2021 voltar |
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