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Acadêmico: José Renato Nalini Será que o “Contrato Social” não deve mais ser lido ou mencionado, por causa do comportamento de seu autor?
Saibamos distinguir as coisas Tenho constatado a tendência recorrente de se invalidar algo intrinsecamente bom, diante de alguma falibilidade de seu autor. Exemplifico: um sacerdote que se comportaria de forma eticamente discutível, comprometeria o sacramento que ministrou? Nutro a convicção de que o acidental não contamina o essencial. O sacramento é perfeitamente válido. Mas é preocupante a vocação de algumas pessoas que se arrogam a condição de seres superdotados e infalíveis, para detectar pecados ou pecadilhos alheios. Idêntica a postura de quem procura menosprezar a obra de Jean-Jacques Rousseau, sob argumento de que ele teria deixado diversos filhos na “roda dos enjeitados”, a instituição que existiu até há pouco. Um armário com eixo rotativo, que permite a comunicação entre a clausura e o mundo exterior. Ali as mães que não podiam criar seus filhos deixavam as crianças recém-nascidas. Será que o “Contrato Social” não deve mais ser lido ou mencionado, por causa do comportamento de seu autor? É preciso um treino de humildade para reconhecer que não há plena perfeição entre os humanos. Todos somos miseráveis. Alguns, mais miseráveis do que os outros. O Evangelho já ensinava a quem quisesse ouvir: reparas no cisco no olho do seu próximo e ignoras a trava sobre os seus? Todos os mortais ostentam contradições dilacerantes. No livro “Nós, mulheres”, a jornalista espanhola Rosa Montero aborda a questão analisando ícones incontestáveis, como Frida Kahlo e Simone de Beauvoir. A obra pictórica de Frida se tornou muito mais interessante e valiosa do que os murais socialistas do marido Diego Rivera. Acrescenta que Frida se relacionou intimamente com Trotski, em sua tentativa de se refugiar no México. Depois do assassinato de Trotski, ela apregoava que o trouxera ao país apenas para que fosse morto. É uma falácia tola, mas repugnante. Outra mulher analisada por Rosa Montero é Simone de Beauvoir. A jornalista não considera obras-primas os romances, mas aprecia a não ficção. São importantes as Memórias, O Segundo Sexo e o ensaio sobre a velhice. Todavia, considera constrangedora a sua subserviência a Jean-Paul Sartre. Era seu ídolo absoluto, insuscetível de qualquer mínimo defeito. Tanto que Simone chegou a afirmar a um amante: “Nada, nem você, nem minha vida, nem minha própria obra, está acima da obra de Sartre”. Montero assinala que havia duas realidades na dupla SS – Simone & Sartre. De um lado, stars da intelectualidade e do engajamento. Mantiveram-se empedernidos defensores dos soviéticos, ainda depois da descoberta da infinidade de crimes perpetrados pelos tão cultuados líderes comunistas. Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre permaneceram juntos durante cinquenta e um anos. Um a mais do que é chamado “Bodas de Ouro” para os casais tradicionais. Para muitos, transmitiam novo padrão de convivência, baseada na confiança recíproca, no respeito à mais integral autonomia da vontade, na transparência e na honestidade. A verdade é que, na vida íntima, o quadro era outro. Para Rosa Montero, “depois aparecem a Simone e o Sartre privados, que emergiram como uma espuma suja, com a publicação póstuma dos papéis íntimos. Soubemos que Sartre era um don juán compulsivo e patético, que precisava conquistar absolutamente todas as mulheres”. Era tamanha a busca de incessante aventura, que o próprio Sartre admitiu: “Sou um porco!”. Confissão com a qual Simone não concordou: “Quando vejo todos esses fracassos e todas essas pessoinhas amáveis e fracas como Louise ou Olga, penso em como somos sólidos, eu e você”. A pessoinha fraca chamada Olga, de tão transtornada, chegou a apagar setenta e seis cigarros em suas mãos. Outra partícipe das orgias sartrianas se matou. E as coisas ainda vão sendo descobertas aos poucos. Deve-se, em virtude de tais fatos, ignorar-se o existencialismo? Afinal, ele é considerado uma espécie de humanismo, algo que merece a reflexão de toda a intelectualidade mundial. Verdade que o reconhecimento não era unânime. Um artigo publicado em “France au combat” assevera: “Os existencialistas são pusilânimes. O existencialismo é o triunfo da pusilanimidade, da sujeira. É o excrementicialismo”. Para concluir: “tínhamos o movimento dadá, eis agora o movimento cacá”. A imprensa da época, primeira metade do século XX, divulga os boatos de depravação da tribo existencialista. Basta ler o livro de François Dosse, “A saga dos intelectuais franceses – 1944-1989”. Nada disso exclui a contribuição sartriana para o engajamento dos escritores. Em 1948, Sartre definiu, no texto “Que é a literatura?”, o que entendia por engajamento do escritor: “O escritor engajado sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar”. Isso vale até hoje. Escrever por escrever é fácil. Escrever para melhorar o mundo é mais difícil. Seja como for, saibamos distinguir as coisas: não confundamos a obra com a vida de seu autor. Examinado de perto, ninguém é normal! Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão Em 16 12 2021 voltar |
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