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LUTO & MEMÓRIA
Acadêmico: José Renato Nalini
A morte é um fato da vida. Inevitável. Por que fugir?

Luto & Memória

Uma das funestas consequências desses quase dois anos atípicos, em que tivemos de nos distanciar, não nos tocar, usar máscaras e exercer o ofício da reclusão, é a ausência dos rituais de lutos.

Sempre levei a sério a morte. Perdi avós e senti muito. Perdi tios. Igualmente. Mas nada como perder um irmão mais novo, o pai e a mãe. Foi algo que me transformou. Comecei a pensar continuamente em morte. Por isso escrevi "Pronto Para Partir?", indagação a que respondo: "não estou pronto; não sei se um dia estarei". Embora tenha consciência de que ela chegará, por mais que eu relute em admitir isso.

Procurei abraçar os que tiveram de enterrar seus entes queridos. Nunca me furtei aos velórios. Estranho que alguns amigos digam "não vou nem a hospital, nem a cemitério". É nessas horas que as pessoas precisam de um apoio. Para festas não há segredo em esgotar
os espaços.

Veio a pandemia e a recomendação médica foi: "Você é idoso e tem comorbidades sérias! Está proibido de frequentar hospitais, velórios e cemitérios".

Senti muito. Foi uma ruptura a um hábito arraigado. Desde criança, em minha família vivenciamos as mortes sem pretender escondê-la à infância. A morte é um fato da vida. Inevitável. Por que fugir?

Durante o período de recolhimento, apelei à memória para recordar dos que já se foram. Tanta gente querida! Para Julian Barnes, autor de "O homem do casaco vermelho", amor e luto são duas faces de uma única realidade. Será a memória confiável? Lygia Fagundes Telles diz que a ficção é uma quase-memória. Em toda ficção há muito do autor.

A memória varia de pessoa a pessoa e tem muitas condicionantes. A capacidade de percepção, a estratégia de armazenar e de localizar quando necessário, a habilidade a reproduzir o que se conservou, a linguagem a ser utilizada, etc. A memória, para muitos, está muito mais próxima da imaginação do que a habilidade de retenção de imagens no cérebro. Isso tem a ver com o testemunho, com razão chamada de "a prostituta das provas", enquanto a confissão é "a rainha das provas".

Maria de Lourdes Teixeira, a primeira mulher eleita para a Academia Paulista de Letras, dizia que os mortos só morrem de verdade quando nos esquecemos deles. Enquanto nos lembrarmos, eles estarão vivos em nossa
memória.

Uma tragédia como a pandemia da covid-19 entrelaça os temas luto e memória. O luto, diz Julian Barnes, não é algo que alguém possa fazer em nosso lugar. O luto há de ser sorvido na solidão. O ritual do luto é doloroso e cansativo. Mais difícil, ainda, quando o morto não teve uma longa enfermidade, que preparasse a família e os seres queridos para a despedida. Foi o que aconteceu na peste que atingiu o globo e que ainda não foi embora, nada obstante os apressados mergulhem na volúpia das aglomerações, no banimento das máscaras, na vida como se tudo tivesse retornado à normalidade.

Tudo foi inesperado desde março de 2020 até dezembro de 2021. Inexplicável que alguns idosos tenham sobrevivido e jovens tenham perecido. Uma praga aleatória. Sem explicação. Atormentando a ciência e a medicina. Quem vai morrer, quem vai escapar? Nada conseguia responder de forma convincente.

Mais triste ainda não poder estar perto de quem está encerrando a sua aventura humana. Durante muito tempo haveremos de mergulhar nesses meses absurdos, fazer as contas de quem se foi e de quem sobreviveu. Trabalhar com as sequelas, que existem e são múltiplas.

Chega uma hora e nós nem conseguimos registrar nos escaninhos da consciência os nomes daqueles que se foram, ceifados pela covid e dos quais não conseguimos nos despedir, nem acompanhar em sua última viagem. Até a liturgia do luto foi subtraída aos sobreviventes.

Continuo a insistir em que nos recordemos de todas as vítimas, tantas das quais poderiam ter sido salvas, tivéssemos governo responsável e efetivamente atento às necessidades e anseios da população que o sustenta. Elas merecem um bosque: uma árvore para cada ser humano que nos foi roubado. Algo que permita permanente visualização dos que deverão continuar a residir em nossa memória e aos quais ficamos devendo o dever humano de um luto digno.

Publicado no Jornal de Jundiai/Opinião
Em 12 12 2021



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