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UMA VERDADE INCÔMODA
Acadêmico: José Renato Nalini
O constituinte não imaginava que em 2021 estaríamos imersos em uma opressiva influência de redes sociais que nos manipulam, sabem mais de nós e de nossa vida do que nós próprios e elegeriam representantes em todo o planeta.

Uma verdade incômoda


Desde 1988, passei a encarar o artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil como um ponto de interrogação. Saudável a migração topográfica dos direitos fundamentais, que anteriormente estavam na rabeira do texto fundante, para o seu pórtico. Mostra a preocupação do constituinte com a reafirmação desses valores impostergáveis, anteriores à positivação do pacto, cuja universalização já se conquistou. Só falta cuidar de sua concretização.

Todavia, não satisfeito com a ratificação dos quatro direitos de primeiríssima dimensão – liberdade, igualdade, propriedade e segurança – (pois vida, tecnicamente, é pressuposto à fruição de qualquer direito), o formulador da Lei Maior explicitou setenta e sete irradiações desses bens da vida. Posteriormente, ainda incluiu um septuagésimo oitavo, o direito à prestação jurisdicional oportuna.

Só que nessa enunciação, longe de ser exauriente, incluiu antagonismos gritantes. Um deles, o duelo entre privacidade e publicidade. Como garantir intimidade, o direito de estar só, e a transparência, valor republicano tão enfatizado em nossos dias?

O constituinte não imaginava que em 2021 estaríamos imersos em uma opressiva influência de redes sociais que nos manipulam, sabem mais de nós e de nossa vida do que nós próprios e elegeriam representantes em todo o planeta.

No livro “Uma verdade incômoda”, as jornalistas Sheera Frankel e Cecilia Kang desvendam a trajetória do Facebook, agora chamado “Meta”, baseado na realidade do metaverso. Há inúmeros episódios que mostram a fragilidade do esquema de proteção dos usuários e o uso de seus dados para diversas espécies de finalidades. Inclusive as eleiçoeiras.

Há um outro livro, “Algoritmos da Opressão”, em que a professora Safiya Noble mostra que os algoritmos podem ser preconceituosos. Não se pode olvidar que são ferramentas elaboradas por seres humanos, cujo DNA impregna seu funcionamento. Não se pense que big data e algoritmos sejam neutros, benignos ou objetivos. Eles são tudo, menos isso!

A definição das decisões algorítmicas não é isenta. Suas conclusões podem ser sexistas, racistas e cultivar equivocadas noções de meritocracia. Reiteram estereótipos e fortalecem noções primitivas que mentes frágeis acolhem automaticamente, sem qualquer prévia reflexão.

É o que se verifica no Brasil polarizado, em que teorias da conspiração, velhos mitos obscurantistas e uma tosca divisão do mundo entre os “bons” e os “comunistas” separa irmãos e amigos. Essas noções nutridas por primatas já existiam, mas havia um certo pudor, uma espécie de constrangimento de quem as mantinha sob reserva. Foi necessária a explosão do mau-gosto para que os freios inibitórios se perdessem. E então afloraram os sentimentos primitivos, que já não envergonham os que assumem a bizarrice.

O tema é tratado de forma instigante nos livros “Privacidade e Poder, de Carissa Véliz e “A Era do Capitalismo de Vigilância”, de Shoshana Zuboff. É uma leitura interessante, até com recomendações do que se deve fazer para preservar a privacidade, um valor protegido pela Constituição Cidadã.

É interessante constatar que o fenômeno da divulgação de dados coincide com certo exibicionismo daqueles que não hesitam no excesso de selfies, postam todos os seus passos nas redes, numa postura exatamente contrária à da reserva na exposição das intimidades.

A preocupação com a LGPD – a Lei Geral de Proteção de Dados parece conflitar com esse individualismo egoísta que faz questão de fazer da vida uma vitrine. Como proteger dados pessoais, principalmente os dados sensíveis, se é o próprio interessado que prodigaliza suas imagens em todos os espaços abertos no mundo web?

São questões que devem interessar ao mundo jurídico, sim, porque o Brasil é uma República em que tudo tem de ser normatizado, como se a lei fosse capaz e suficiente de resolver todos os problemas.

Cada vez mais me compenetro de que lei é uma dimensão muito reduzida do fenômeno do Direito. E dou razão a um autor francês que descobri quando ainda no Bacharelado na PUC-Campinas: Jean Cruet. Ele escreveu um livro desafiador: “A vida do direito e a inutilidade das leis”. Cuja epígrafe fala por si: “Sempre se viu a sociedade modificar a lei. Nunca se viu a lei modificar a sociedade”.

Confesso que o assunto é polêmico. Mas o intuito destas reflexões é, justamente, suscitar debates e discussão, para clarear nosso horizonte.


Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 13.11.2021



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