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Acadêmico: José de Souza Martins Quem não fala a língua dos mistérios do dinheiro não legitima orientações da economia.
Todos nós julgamos compartilhar a mesma concepção de dinheiro. A mesma dos economistas, dos governantes, dos banqueiros, do pipoqueiro da praça, de quem recebe esmola e de quem recebe salário. Num país como este, a coisa é bem mais complicada. Discurso para explicar ao povo o sobe e desce da economia, que mais desce do que sobe, chega-lhe reinterpretado pela diversidade de concepções desencontradas do que o dinheiro é. Quem não fala a língua dos mistérios do dinheiro não legitima orientações da economia. Há muitos anos, fiz ampla pesquisa sobre a expansão da nossa fronteira econômica, na região amazônica, que em pouquíssimo tempo foi invadida por uma nova mentalidade, associada ao dinheiro. O dinheiro e seus mistérios. Como a desvalorização dos seres humanos, não mais vistos na perspectiva de valores como a honra, a palavra, a lealdade, a amizade, a honestidade, o caráter, a dedicação ao trabalho, a solidariedade comunitária. Tudo desmoronou. Ficou como referência o dinheiro, que quase ninguém tinha, a expressão do poder da apocalíptica Besta-fera, como me explicou um caboclo do norte do Mato Grosso. Sábios do dinheiro intuem que essas qualidades, que o vulgo define como diabólicas, estão na força que o dinheiro tem para tomar conta de quem o possui. Em 1922, o economista Dennis Robertson (1890-1963) publicou Money, livro que seria traduzido para o português e publicado no Brasil em 1960, pela Zahar com o título de A Moeda. Ele foi uma das grandes mentes da Universidade de Cambridge, membro de Trinity College, da linhagem dos economistas que naquela Universidade preocupavam-se com as consequências sociais irracionais da economia e do fetichismo do dinheiro. Foi interlocutor de John Maynard Keynes (1883-1946), que desenvolvera a teoria da renda e do emprego, cuja formulação sintética atualizo: sem renda não há emprego, com renda sem emprego não há consumo e sem consumo o capital se condena à morte. A economia fulgura mas agoniza. Seus biógrafos destacam nessa sua obra o uso de epígrafes extraídas de dois livros referenciais de Lewis Carroll (1832-1898), Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho. Como o pai de Robertson, Carroll era um eclesiástico, professor de matemática na Universidade de Oxford, membro no Christ College. Excelente fotógrafo, era um mestre do imaginário. As inspiradoras epígrafes de Carroll na obra de Robertson foram motivadas pelo nonsense que este último identificava no dinheiro e a vida própria que adquiria em sua circulação, cumprindo nela a função de avesso da economia. O economista inspirava-se na lógica constitutiva da sociedade imaginária que Lewis Carroll construíra. O dinheiro como autor da realidade e não como criatura e instrumento do que os seres humanos acreditam estar fazendo. O dinheiro como dono de seu dono. Como na conversa entre Alice e a Raínha, em o Outro Lado do Espelho: “’Bem, é que no nosso país’, disse Alice, ainda um pouco ofegante, ‘o mais certo seria chegar a outro lugar – depois de correr tanto como nós fizemos.’ (...) ’Um país muito lento!’, retorquiu a Raínha. ‘Não, aqui, como você vê, é preciso correr o mais que se pode para ficar no mesmo lugar.’” E, em outro ponto, esclarece: “ ‘É a consequência de se viver para trás’... ‘Ao princípio fica-se um pouco entontecido.’ “ Agora mesmo, neste cenário de crise econômica e política, os que tem mais clareza intuem que virada do avesso, a economia brasileira já não é uma economia propriamente capitalista. Corrompida em suas estruturas básicas de reprodução e desenvolvimento, teve destruída as bases de sua dinâmica. Libertou o avesso gerado dentro de si mesma. Como adverte Carrol. “uma das coisas mais graves que podem acontecer numa batalha é ficar sem cabeça.” Ao que parece, foi o que aconteceu aqui. Carroll tem a solução: “Então, o melhor é tentar o sentido oposto.” Ainda nestes dias de outubro de 2021, o Papa Francisco, ao falar no IV Encontro dos Movimentos Populares, apontou o que pode ser a poética criativa do sentido oposto. Ressaltou a necessidade urgente de reformas econômicas e sociais profundas que restaurem a precedência do bem comum na economia do mundo. Desde a redução possível e viável da jornada de trabalho, a criação de emprego e a correção consciente e responsável das anomalias de comunicação que vitimam a própria condição humana, em particular as novas gerações. O cenário de avessos em que estamos vivendo aqui no Brasil situa-se nessa ordem enlouquecida. O governo foi desempossado em 1º de janeiro de 2019 para que o Brasil fosse governado pelo fetiche de uma coisa desencarnada e sem vida, que segue seu próprio rumo de coisa, o dinheiro na esterilização da função social do dinheiro. Publicado no suplemento "Eu& Fim de Semana", do jornal Valor Econômico, 29 de outubro de 2021. voltar |
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