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OS BURACOS DO ALAMBRADO
Acadêmico: Gabriel Chalita
O sol é mais quente no meio do dia. Já passei do meio da vida. Certamente, já passei. A quentura em mim prossegue nos ódios que ainda não superei, nas imperfeições que me acompanharão até o último suspiro e no amor que é como água que bebo e que me nutre, enquanto aguardo. 

O dia havia se espreguiçado além do costumeiro. Fiquei na cama rodopiando passados. Sou uma mulher do presente, mas, vez ou outra, me entrego à saudade.

O tempo é uma costura de encontros e, então, as descosturas. O tempo é um tecer de esperanças e, então, a dor. O tempo é o que é. 

Sentada, aguardando uma amiga em um restaurante rente a um enorme campo verde, vejo o alambrado. Vejo e penso o alambrado. As impossibilidades da passagem. O que está do lado de cá, do lado de cá está. E o mesmo para o lado de lá. Vejo alguns animais curiosos cheirando o que não podem ter. Cheiro o passado pelos buracos do alambrado da minha alma.

Hoje, faz um ano que meu marido se foi.
Não sei se as datas desconstruidoras de felicidade devem ser lembradas. Mas mando nada nas lembranças que tenho. Penso em Lara, minha filha, e no pai que não a cultiva. Penso nos que não se importam com os descompromissos com o amor. Penso nos que descumprem a promessa do viver acompanhado. 

O sol é mais quente no meio do dia. Já passei do meio da vida. Certamente, já passei. A quentura em mim prossegue nos ódios que ainda não superei, nas imperfeições que me acompanharão até o último suspiro e no amor que é como água que bebo e que me nutre, enquanto aguardo. 

Aguardo uma amiga para o almoço.  Aguardar o fim sem pensar no fim é mais prudente na ventura da vida. Minha mãe só soube sobre o próprio pai aos 80 anos de idade. Súbito, uma antiga vizinha contou. Soube ela há tempos e, há tempos, rascunhou coragem para entregar a carta do que foi algum ontem. O que disse a si minha avó, quando nada disse aos outros o que sofreu? Eram outros tempos, e as paixões proibidas pecavam mais.

Há um barulho na mesa ao lado. Alguma reclamação fora do tom. Um prato que não veio como queriam. Sei nada do que quero. Decidi, depois de Ayrton, viver sem ninguém. Desfruto do privilégio de usufruir da aposentadoria e de alguns proventos de família.

Por que minha avó não contou a história verdadeira à sua filha? Morreu com os segredos. Quando minha mãe soube a história do pai, calou sobre o assunto. Ouviu. Disse nada. E pediu que abrissem a janela. Era, também, o meio de um dia quente.

Reparo nos animais do lado de lá do alambrado e me preocupo se há água. Olho para o relógio mais de uma vez, enquanto aguardo. Sophia tem o hábito do atraso. 
Mas hoje estou sem pressa de viver. 

Divago decidindo o que comer. Algumas decisões da vida cabem a mim, outras cabem a mim aceitar. Se fosse meu o espaço separado pelo alambrado, teria já consertado os buracos. Ou não. Em um deles, descansa um pássaro antes de voltar ao necessário voo.



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