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A INVENÇÃO URBANA DOS POBRES
Acadêmico: José de Souza Martins
A competência criativa dos que tem necessidades sociais injustas permite-lhes fazer muito com o pouco, dar utilidade ao que é inútil, beleza ao que é feio.

Em duas semanas, pude observar o nascimento de uma favela nas proximidades do Hospital Universitário, da USP. Num dia não havia nada num terreno grande que, dizia-se, pertence à Sabesp. Duas semanas depois, o terreno já estava ocupado por barracos, os de frente para as ruas devidamente numerados. Tomaram o cuidado de seguir o critério de numeração das construções que já existiam na rua, o critério da Prefeitura.

Ou seja, o favelado não quer apenas uma moradia, por precária que seja. Quer também um endereço, a casa como lugar identitário, o endereço como nexo relacional com a sociedade, com todos. Mesmo com aqueles que não reconhecem a inevitabilidade dos fatores de surgimento da favela.

No que foi um muro, foram abertas portas e o trecho correspondente à porta foi pintado de cor diferente da moradia do vizinho. Também definição de identidade. Negação comparativamente forte em relação a apartamentos, que são o cenário do repetitivo da habitação.

Surgiu ali até uma pequena infraestrutura comercial. Num Bar do Vô, o dono pintara na fachada: “Whisky Cavalo Branco, 20,00 R$”. Mais adiante, na fachada de outro barraco: “Mini Padaria. Temos pão, leite, café, ovos..” Pinturas caprichadas de pães e de um bule derramando café numa xícara, contrastam com a pobreza do tapume da fachada.

Numa favela vizinha, já antiga com sinais evidentes de que está consolidada, há duas igrejas evangélicas. Confirmam que até Deus é favelado.

Nas favelas que conheço, a habitação é a negação do linear e da linearidade, o traço do que é repetitivo. Colocando-se entre parênteses a pobreza evidente, é singular e imaginativa. Expressão da criatividade, da diferença e da originalidade. O material de construção pobre e a construção pobre não significam pobreza de espírito.

O barraco tende a ser obra de concepção artística, porque inventiva. Já vi, por fora e por dentro, barracos de incrível originalidade. Num deles, o barraco pequeno, tinha dois pavimentos. Na frente do cômodo de cima, uma varanda, o dono na rede deitado apreciando a cidade. Sua casa é plástica e pós-moderna porque indefinida. Com os materiais de que dispõe, ele lhe dá a forma que lhe convém, se convém.

Todos se lembrarão da grande repercussão da notícia sobre Estêvão Silva da Conceição, baiano de origem, que ergueu na favela de Paraisópolis, em S. Paulo, um verdadeiro palácio, original e criativo. Lembra a arquitetura de Gaudi. Tem até um jardim suspenso. Sua casa foi fotografada por Bob Wolfenson, a fotografia repercutiu e Estêvão foi convidado a ir a Barcelona para conhecer a obra de Gaudi, cujo estilo, sem o saber, ele recriava.

A competência criativa dos que tem necessidades sociais injustas permite-lhes fazer muito com o pouco, dar utilidade ao que é inútil, beleza ao que é feio. O antropólogo Oscar Lewis definiu a cultura dos restos e resíduos como cultura da pobreza, matéria prima de reinvenção material e social. Aparentemente, não há campo da atividade humana em que os favelados não atuem criativamente.

A menos de 1 km da favela que está nascendo agora, nasceu e se firmou há muito a Favela do Jaguaré Era ali a fazenda de uns 340 ha do engenheiro agrônomo Luís Dumont Villares, sobrinho de Santos Dumont. Ele tinha um sonho e o narrou no livro Urbanismo e Indústria em S. Paulo.

Visitou complexos residenciais e industriais na Inglaterra e nos EUA, inspirou-se. Villares pensava o urbano e a cidade na perspectiva da utopia socialmente libertadora. Doou 150 mil m2 à Prefeitura para que ali construísse um conjunto esportivo para o bairro, coisa que ela não fez. O terreno foi invadido e se transformou numa das maiores favelas de S. Paulo.

Justamente na favela houve várias iniciativas de criatividade. Dois irmãos que nela cresceram, trabalharam em padaria e confeitaria da Lapa. Já adultos, decidiram abrir uma padaria na favela. Ocuparam um terreno e organizaram o estabelecimento, que se tornou uma das melhores padarias da região. Estive lá, uma vez, provando pães e doces.

As favelas brasileiras são a evidência mais notável do desfeito estrutural do subcapitalismo brasileiro: a renda da terra como fundamento limitante da economia. O capitalismo é incompatível com o primado da renda fundiária, que para ele representa uma irracionalidade, dedução do capital para produção. Uma irracionalidade e um fator de redução da taxa de lucro.

Aqui se consideram o trabalho e o salário como inimigos do lucro. Governo e empresas conspiram contra o trabalho e o salário todo o tempo. Mas não conspiram contra a propriedade fundiária, urbana e rural, cujos preços especulativos inviabilizam a expansão dos setores modernos do capitalismo produtivo e da atividade do capital.



Artigo publicado em Eu& Fim de Semana, jornal Valor Econômico, Ano 22, nº 1.086, São Paulo, Sexta-feira, 15 de outubro de 2021, p. 4.




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